Perlimps (2022)

Natureza vazia

título original (ano)
Perlimps (2022)
país
Brasil
formato
Animação
duração
75 minutos
direção
Alê Abreu
vozes originais
Giulia Benite, Lorenzo Tarantelli, Stênio Garcia
visto em
Cinemas

Primeiro, esta é uma história de cores. São elas que aparecem, sozinhas, na cena inicial. Quadros inteiramente amarelos, roxos, lilás, azuis e verdes piscam na tela, junto de notas musicais. Aos poucos, o ritmo destes flashes se acelera, num frenesi estroboscópico. Poucas introduções se dariam ao trabalho de criar uma dança abstrata de cores e sons, como se estes estímulos fossem responsáveis isolados pela produção de sentido. A introdução de Perlimps nos prepara para uma aventura radical em termos estéticos.

A jornada sensorial se mantém, mesmo quando entram em cena os elementos figurativos. Esta floresta povoada por duas únicas criaturas na maior parte do tempo (os animais Claé e Bruô) possui intensas variações de cores e texturas, em trabalho impecável de iluminação. O diretor Alê Abreu (do magistral O Menino e o Mundo) se dedica com afinco à exploração de cada paleta de cores e fonte luminosa. Assim, um canto roxo da floresta terá tonalidades rosas, lilases, vermelhas, azuis, conforme a fonte e intensidade da luz — geralmente, difusa e agradável, confortável, sem a pretensão de chocar.

Seria possível se encantar apenas pela beleza destas imagens, caso sejam interpretadas como finalidades em si próprias. A obra se assemelharia à descoberta de um álbum de retratos, coeso e impressionante, repleto de belas fotografias em still (não há um único quadro do longa-metragem que soe finalizado às pressas). A preocupação formalista consiste no verdadeiro protagonista deste filme, capaz de oferecer uma floresta multicolorida onde os tons jamais aparentam aleatórios, nem desordenados. Pelo contrário, existe uma exploração rigidamente determinada de qual cor pode se alinhar com qual outra, em qual momento. 

No entanto, outros enxergarão em tamanho rebuscamento um trabalho retórico de decoração, ocultando a narrativa que deveria ser favorecida por tais escolhas de linguagem. A sugestão de que “cada imagem parece um fundo de tela” resulta tão elogiosa quanto depreciativa: não há nada menos memorável, e vazio de significados, do que a paisagem genérica de uma ilha paradisíaca qualquer, do tipo que já integra o pacote de imagens de um computador novo. Afinal, qual é o limite (e a função) da beleza?

Na ausência de conflitos, os dois personagens andam a esmo de uma cena linda à outra, lindíssima. As sequências se equivalem, porque não fazem progredir a trama.

A questão é grandiosa demais para este artigo, mas digamos que não há forma dissociada de conteúdo, e que nenhuma criação poderia ser bela em si, separada de seu referente. As imagens valem tanto quanto se referenciam a um elemento real, evocam ideias, ou ainda discutem conceitos. O caráter relativo e condicional da beleza faz com que ela se torne um elemento subjetivo: sem isso, todos achariam os mesmos filmes belos, e outros, incrivelmente feios. A qualidade (seja ela beleza, originalidade, etc.) não se encontra dentro da obra, mas fora dela, no olhar daquele capaz de identificar tais aspectos, seguindo critérios específicos.

Essa pequena digressão serve a dizer que Perlimps apresenta uma casca luxuosa e deslumbrante para um fruto magro até demais. Em termos cartunescos, este seria o equivalente das crianças que se empilham umas sobre as outras, e então vestem um casaco bege, colocam um chapéu e tentam se passar por adultos. O tamanho é equivalente; a silhueta, também. No entanto, o conjunto soa deslocado, incoerente. Aqui, a direção embeleza, com tintas de uma qualidade técnica incomparável, a sua fábula de uma simplicidade atroz.

É claro que o encontro entre Claé e Bruô, figuras representantes de reinos inimigos, terminará com a amizade entre ambos. No entanto, é difícil se relacionar com tantos elementos invisíveis, numa espécie de faz-de-conta que permanece no domínio das sugestões, sem contaminar as imagens. Os heróis mencionam os Reinos do Sol e da Lua, os equipamentos potentes, os generais poderosos, os perigos iminentes. Nada disso se materializa, no entanto. Ambos buscam os Perlimps, criaturas em perigo porque perseguidas pelos Gigantes. Não veremos as criaturas fugitivas, nem os gigantes.

A floresta por onde perambulam está vazia. Os demais animais, criaturas, sons, estão ausentes durante a quase totalidade da jornada. Falta uma contextualização social e política deste espaço. Em outras palavras, precisaríamos conhecer melhor o que existe fora da floresta, ao redor deste espaço, em qual contexto. A quem ambos mandam mensagens? Por que os Perlimps precisam de ajuda contra os Gigantes? Por que estes dois agentes secretos são enviados? O que teriam a perder, caso falhassem em sua missão?

Na ausência de conflitos, os dois personagens andam a esmo de uma cena linda à outra, lindíssima. As sequências se equivalem, porque não fazem progredir a trama. A sugestão de urgência se perde: eles parecem estar passeando numa tarde de domingo. Difícil acreditar que estejam de fato em alguma missão. A reviravolta final confere um sentido precioso a este labirinto a céu aberto, mas ela chega tarde demais — isso numa narrativa de míseros 75 minutos de duração. Caso a surpresa fosse revelada na metade, ou antes disso, e acompanhássemos a consequência de tal descoberta, a fricção entre o real e a fantasia produziria maior sentido e interesse. O filme começa, de fato, na cena final.

Por isso, o longa-metragem consegue a proeza de ser ao mesmo tempo confuso e explicativo demais. Claé e Bruô passam a aventura inteira se explicando um ao outro: falam de máquinas específicas, de lugares que precisam alcançar, de criaturas com características particulares. Detalham origens, necessidades, circunstâncias, regras e leis que jamais são colocadas em prática pela imagem. Palavras de ordem buscam atribuir algum dinamismo (“Está lá!”, “Vamos!”), porém a ausência da práxis destes conceitos na narrativa faz com que permaneçam abstratos, ou melhor dizendo, vagos.

Além disso, a dupla interage pouco com este fundo brilhoso, o que reforça a sensação de um plano de fundo, uma pintura estática. Somente em sua conclusão, relembramos o potencial do autor em articular política e precisão de linguagem, vistos anteriormente em O Menino e o Mundo. No entanto, o roteiro de Perlimps se mostra desequilibrado, arrastando-se na busca pelos personagens-título e acelerando demais as conclusões importantes. As mensagens amplas acerca da amizade e do valor da natureza destruída pelos homens constituem menos uma reflexão do que uma passagem quase obrigatória em filmes infantis, e que este projeto não demonstra real vontade de aprofundar.

Ao final, voltamos a refletir sobre roteiro. Sempre ele, o roteiro, em especial no caso das animações brasileiras. Chef Jack, Tito e os Pássaros e Lino: Uma Aventura de Sete Vidas foram elogiados e criticados pelos mesmos motivos: grande controle técnico e domínio de linguagem, aplicados a uma trama que não parece ter recebido um décimo da atenção despendida à imagem. Precisamos parar de subestimar crianças e seus pais com a crença de que qualquer jornada de amizade e amor à natureza, num cenário exótico e colorido, baste enquanto ponto de vista. Possuímos amplas condições de elaborar pérolas da animação, como o próprio Alê Abreu já demonstrou. O cinema infantil pode, e merece, reflexões muito melhores do que lhe temos oferecido.

Perlimps (2022)
5
Nota 5/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.