Chef Jack, o Cozinheiro Aventureiro (2023)

O que dizem as animações?

título original (ano)
Chef Jack – O Cozinheiro Aventureiro (2023)
país
Brasil
gênero
Comédia, Aventura, Infantil
duração
80 minutos
direção
Guilherme Fiúza Zenha
vozes originais
Danton Mello, Rodrigo Waschburger, Guilherme Briggs, Rejane Faria, Álvaro Rosa Costa, Renata Corrêa, Cíntia Ferrer, Cecília Fernandes, Tásia D’Paula, Carlos Magno Ribeiro, Guilherme Mello, Giordano Becheleni, Ana Laura Salles
visto em
Cinemas

Cada estreia comercial de uma animação brasileira constitui uma vitória. Entre os diversos setores que o cinema nacional ainda batalha para desenvolver, as produções animadas funcionam como um elemento-chave da indústria. Ora, apesar do forte potencial de público destas produções, elas são caras, carecem de profissionais altamente qualificados, e recebem tradicionalmente pouco incentivo estatal à realização. Quando a Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) realizou uma lista com as 100 melhores animações brasileiras de todos os tempos, o ranking abrangia quase toda a filmografia do gênero até então, reunindo longas e curtas-metragens. Para efeito de comparação, nosso audiovisual tem finalizado mais de 180 longas-metragens em live-action por ano.

Logo, a estreia de um longa-metragem animado costuma indicar a vitória de uma pequena equipe persistente que, em geral, batalha vários anos para finalizar sua obra. Cada encontro com criadores como Marcelo Marão, Júlio Cavani, Alê Abreu ou Nara Normande, apenas para citar alguns, transparece o empenho e a criatividade dos animadores brasileiros. Estes realizaram algumas das produções mais instigantes do nosso cinema recente — caso do excepcional O Menino e o Mundo (2013) e do multipremiado Guaxuma (2018). Falta o circuito comercial refletir tamanho investimento de tempo, conhecimento e talento.

Chef Jack: O Cozinheiro Aventureiro soa como uma pedida adequada aos nossos tempos, na tentativa de agradar crianças, mas também se tornar palatável aos adultos; ao passo que transmite mensagens inspiradoras, como se espera de tantas obras infantis, banhadas em ritmo e cores apropriados à era das redes sociais. A presença de Danton Mello na voz original do cozinheiro ajudaria o alcance popular, graças ao apelo do ator.

No centro da trama encontra-se um profissional de traços parcialmente realistas, revestido de um teor fantástico. Jack seria um “cozinheiro aventureiro”, responsável por escalar penhascos e enfrentar imensos desafios na busca do ingrediente perfeito para seus pratos renomados. De maneira abrupta, oferece-se a um reality show culinário, mistura de Jogos Vorazes e Masterchef, no qual duplas arriscam a morte em escaladas cuja finalidade seria encontrar uma noz raríssima. Seu assistente é um menino amador, que precisa provar o talento ao longo da competição.

Para tamanha dedicação, seria esperada uma reflexão mais complexa, uma visão de mundo mais contemporânea — o que nunca impediu a leveza, o humor, nem a comunicação com o público.

Entretanto, algumas escolhas artísticas e de roteiro comprometem o resultado. Em primeiro lugar, talvez Danton Mello não fosse a melhor escolha para o papel. Como se afirmou acima, o artista é excelente, e efetua uma bela composição de voz no longa-metragem. No entanto, a escolha de um ator branco para interpretar um personagem negro é problemática. O roteiro insiste em valorizar o pai negro e as origens deste herói que, curiosamente, possui traços de etnia indefinida, lembrando mais um Aladdin do que um negro brasileiro, como se afirma com clareza nos traços do pai. De qualquer modo, inúmeros talentos negros representariam uma decisão mais coerente e eticamente responsável para a voz do herói.

Além disso, o principal opositor de Jack na disputa pelo prêmio é um sujeito efeminado e ridículo, de sotaque francês. A figura incomoda por sua própria existência, mas a narrativa vai além: ele é visto como patético e fraco porque efeminado. Jeremy é sentimental; chora quando ninguém mais se emociona (algo percebido como inconveniente e vergonhoso), e infantil, sendo retirado de cena literalmente no colo de seu protetor, com o dedo na boca, tal qual um bebê. Em oposição, Jack é viril, forte, destemido. A animação lhe atribui um corpo forte e um ideal de beleza contemporâneo (os cabelos lisos e esvoaçantes). 

Logo, a associação da emotividade com fraqueza e motivo de escárnio resulta numa escolha homofóbica e misógina dos criadores. As mulheres terão papel de destaque adiante, ainda que jamais se testemunhem suas conquistas. Quando um pai e uma mãe assistem, na televisão, aos filhos em perigo, o homem se teletransporta sabe-se lá como ao cenário do jogo, para oferecer palavras de sabedoria, enquanto a mulher limita-se a chorar e se lamentar. Novamente, temos a sensibilidade como ausência de racionalidade e controle de si. A principal amiga de Jack chega ao mesmo patamar da disputa que o colega, porém suas proezas físicas, intelectuais e culinárias permanecem distantes dos olhos do espectador.

Em paralelo, o protagonista e seus dilemas são mal desenvolvidos. Jamais conheceremos o passado de Jack, suas raízes, sua formação, seus objetivos pessoais para além do prêmio televisivo, suas relações familiares ou afetivas. Os personagens — e o espectador — entram no reality show sem compreender ao certo em que ele consiste, quais seriam os tais perigos, nem o objetivo final. Mesmo o ato de cozinhar fica em segundo plano. Com exceção da bela cena de um lámen preparado no improviso, as demais oferecem pratos prontos de imediato, saltando a etapa da preparação. Desaparecem a noções do processo e criação, inerentes à gastronomia. Nem os tais ingredientes raros, nem o conhecimento técnico e a astúcia dos participantes são destacados.

Já os obstáculos no caminho de Jack e Leonard perdem tensão ou dificuldade. Nenhum dos dois aparenta sofrer riscos reais — vide o caso do monstro gigantesco, diante do qual a dupla permanece em pé, tranquila. Posto que as regras são esquecidas, o suposto “atentado contra o rei” soa fortuito (Por que seria um atentado, especialmente com este termo tão conotado e sério?). Ele seria tão aleatório quanto um veneno cujo efeito se dissipa aleatoriamente, uma árvore gravemente cortada, mas colada de volta de maneira simples, e um exército de castores (Letais? Apenas irritantes?). O universo é explorado superficialmente em suas potencialidades e limitações, em sua coesão e coerência internas.

Por isso, o humor soa deslocado, forçado (“Ele é que nem jiló no café da manhã: ninguém dá falta”), e a caracterização dos personagens coadjuvantes é menos original do que referencial (a dupla negra herdeira de Wakanda; a apresentadora parecida até demais com Effie Trinket). Sobram mensagens a respeito da crença em si mesmo, da necessidade de ajudar e valorizar as amizades, da importância da humildade e de aceitar derrotas. Jack era arrogante, genial, um tanto egocêntrico? Tinha alguma relação afetiva com a comida para além da famosa quiche e da afronta com o rei do Gulodistão? Pouco importa: ele recebe a lição de moral genérica, que se estima necessária a todos os espectadores.

Estas e outras decisões artísticas despertam a impressão de um longa-metragem de notável esforço de produção, e visível carinho na realização técnica. As cenas com fogo (novamente, a sequência do lámen), a bruma noturna e a chegada à espécie de esfinge munida de um enigma comprovam o potencial técnico e visual desta equipe. O diretor Guilherme Fiúza Zenha sabe controlar os diferentes aspectos criativos. Em contrapartida, o roteiro se encontra em impressionante defasagem diante de tamanho empenho. A falha não caberia apenas a este filme: diversas animações brasileiras penam, lutam e se esmeram em oferecer um produto visualmente memorável, porém discursivamente decepcionante.

Neste caso, o roteiro nem soava pronto para passar à produção, no que diz respeito aos elementos mais básicos: elaboração de personagens, de conflitos, de objetivos. Parece ter havido um direcionamento mais comercial (“Reality shows de culinária são populares hoje em dia”) do que artístico e de visão de mundo propriamente dita. O que os autores pretendiam transmitir a partir desta singela aventura? O que os moveu durante anos na construção de uma obra sobre um chef aventureiro, que cozinha pouco, mostra prazer limitado pela comida e envereda por jornadas tão simplórias? O que pretendiam dizer, transmitir a partir deste empreendimento?

Já está na hora de abandonarmos a ideia de que, para crianças, uma pequena história colorida e musical, uma cartilha de valores morais e um ritmo ágil são suficientes. Não podemos subestimar o público infantil, nem os pais que levam as crianças ao cinema, e muito menos a animação enquanto linguagem. O afastamento do naturalismo permite voos altíssimos no que diz respeito às metáforas, à poesia, à representação. A animação pode ser comovente, política, incisiva, perturbadora, encantadora, mágica, alucinógena. Ela pode ser abstrata, evocadora, simbólica, sugestiva, ambígua. 

Queremos ver muito mais longas-metragens brasileiros nos cinemas, caso em que, com o aumento de produções, surgirão organicamente obras ótimas e outras menos expressivas. Por enquanto, cabe ressaltar que o cardápio oferecido por Chef Jack, o Cozinheiro Aventureiro se mostra magro demais, sem substância. Nem a crítica, nem o público poderia se contentar com a simples existência esporádica do banquete, sem analisar a comida contida nele. Para tamanha dedicação, seria esperada uma reflexão mais complexa, uma visão de mundo mais contemporânea — o que nunca impediu a leveza, o humor, nem a comunicação com o público.

Chef Jack, o Cozinheiro Aventureiro (2023)
4
Nota 4/10

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