Se você pudesse comprar um robô para lhe fazer companhia, recorreria à invenção do mercado? A pergunta soaria como uma ficção científica distante, não fosse pela presença real de inteligências artificiais que conversam com os donos, robôs que auxiliam na limpeza, e serviços tecnológicos, disponíveis em determinados países, justamente para os solitários. Na época em que tudo pode ser produzido, customizado e vendido, por que não comercializar o afeto?
Neste sentido, a iniciativa de Dog soa menos improvável do que teria parecido vinte anos atrás. Este personagem acostumado aos programas de televisão entediantes, e sem familiares nem companheiros, decide comprar um robô. Basta fazer o pedido na Internet, montar as peças intermináveis, e está pronto o amigo instantâneo. O herói desta fábula e seu novo companheiro passeiam pelo parque, dançam juntos, comem juntos. O cliente se afeiçoa instantaneamente pela compra, que lhe devolve o carinho e respeito.
Estamos, vale ressaltar, numa sociedade dominada por animais. Nesta cidade de Manhattan pré-ataque do 11 de novembro (as Torres Gêmeas são uma referência insistente da direção), os edifícios trazem como habitantes os cães, elefantas, gazelas, gatos. É comum, no cinema de animação e fantasia, afastar-se da humanidade para melhor retratá-la. Ou seja, uma vez que nos distanciamos de um corpo e uma aparência idênticos aos nossos, podemos enxergar com o devido estranhamento as atitudes destes personagens obviamente criados para nos retratar.
Sentimentos de abandono, rejeição, raiva, alívio e saudade transparecem na aventura, trazendo rara complexidade psicológica para uma obra voltada ao público familiar.
O diretor Pablo Berger evita a metáfora óbvia do robô enquanto estrangeiro ou figura explorada pela maioria. Pelo contrário, concebe uma sociedade acolhedora, onde a constituição maquínica do personagem não surpreende ninguém. Nas praças, os transeuntes se olham nos olhos, sorriem aos anônimos e cantam em uníssono. O caráter musical da obra, que inclui números expressivos de dança (vide o sapateado no campo de margaridas) imagina um senso de coletividade e união próximo da utopia.
A música desempenha um papel fundamental face à ausência de diálogos. O projeto traz algumas frases em inglês estampadas nas placas e propagandas na televisão, porém evita que seus protagonistas pronunciem uma palavra sequer. Assim, as inúmeras canções da trilha sonora servem a comentar o estado de espírito de um e outro (com letras que evocam a solidão, ou o prazer de encontrar um amigo) e a determinar o estado geral da ambientação (feliz, festiva, melancólica, tensa).
É certo que, em diversos momentos, o roteiro se ressente da ausência de falas, sobretudo quando Dog e o Robô precisam dar ordens um ao outro. Nesta hora, os olhos apontam ao local onde o colega deveria ir, de modo ainda pouco claro em suas intenções. São raros os filmes que suprimem por completo a falas sem provocar a sensação de que a palavra era importante em algum instante específico. Mesmo assim, os produtores preferem a universalidade da proposta, e a facilidade de exportar a obra sem diálogos a maior número de países — a distribuição já está garantida no Brasil, por exemplo.
No entanto, o roteiro se sai globalmente bem na tarefa de desenvolver as transformações bruscas na dupla central, sobretudo a partir do principal conflito do longa-metragem, quando o Robô apresenta mau funcionamento na praia, e precisa ser deixado pelo melhor amigo. Sentimentos de abandono, rejeição, raiva, alívio e saudade transparecem na aventura, trazendo rara complexidade psicológica para uma obra voltada ao público familiar. Nenhum personagem se converte num herói virtuoso, nem na vítima lacrimosa: a direção preserva um olhar de contemplação, um tanto agridoce, mesmo em sequências de forte apelo emocional.
Talvez o roteiro pudesse se beneficiar de uma edição mais enxuta. Na tentativa de mostrar a vida de Dog e Robô quando se afastam, o segundo terço se arrasta em segmentos da pipa, do esqui, e da espera do colega enferrujado sobre a areia. É improvável que nenhum vigia enxergasse o corpo imenso do Robô durante tantos meses, ou que o cachorro nunca conseguisse expressar à autoridade a necessidade de voltar à praia fechada para resgatar o amigo. Entretanto, o aspecto lúdico do desenho justifica, ou pelo menos atenua, a maioria das incongruências.
No entanto, Robot Dreams demonstra a coragem ímpar, na conclusão, de evitar o final previsível, que vinha prometendo há mais de uma hora. Após uma passagem belíssima em termos de linguagem cinematográfica (o dueto imaginário de dança e canto entre duas pessoas ausentes), privilegia uma saída verossímil, e talvez menos recompensadora em termos de engajamento sentimental, do que recorrer a um otimismo mágico e reparador. Logo, o resultado se mostra mais adulto, e amargo, do que poderiam sugerir os traços simples e as cores fortes.
Entre os colegas críticos de cinema, levantou-se com frequência a possibilidade que Dog e Robô representem mais do que amigos. De fato, em diversas cenas, ambas figuras masculinas transmitem um amor que poderia ser lido como romântico. A interpretação LGBTQIA+ da fábula se sustenta em diversas passagens, embora seja rejeitada de maneira explícita pelos criadores. Ao final, o filme aborda as possibilidades de afeto na pós-contemporaneidade, incluindo o carinho entre dois homens. Sejam eles amantes ou amigos, a ousadia da abordagem se mantém intacta.