Robot Dreams (2023)

Como fazer amigos (e mantê-los)

título original (ano)
Robot Dreams (2023)
país
Espanha, França
linguagem
Animação
duração
102 minutos
direção
Pablo Berger
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Se você pudesse comprar um robô para lhe fazer companhia, recorreria à invenção do mercado? A pergunta soaria como uma ficção científica distante, não fosse pela presença real de inteligências artificiais que conversam com os donos, robôs que auxiliam na limpeza, e serviços tecnológicos, disponíveis em determinados países, justamente para os solitários. Na época em que tudo pode ser produzido, customizado e vendido, por que não comercializar o afeto?

Neste sentido, a iniciativa de Dog soa menos improvável do que teria parecido vinte anos atrás. Este personagem acostumado aos programas de televisão entediantes, e sem familiares nem companheiros, decide comprar um robô. Basta fazer o pedido na Internet, montar as peças intermináveis, e está pronto o amigo instantâneo. O herói desta fábula e seu novo companheiro passeiam pelo parque, dançam juntos, comem juntos. O cliente se afeiçoa instantaneamente pela compra, que lhe devolve o carinho e respeito.

Estamos, vale ressaltar, numa sociedade dominada por animais. Nesta cidade de Manhattan pré-ataque do 11 de novembro (as Torres Gêmeas são uma referência insistente da direção), os edifícios trazem como habitantes os cães, elefantas, gazelas, gatos. É comum, no cinema de animação e fantasia, afastar-se da humanidade para melhor retratá-la. Ou seja, uma vez que nos distanciamos de um corpo e uma aparência idênticos aos nossos, podemos enxergar com o devido estranhamento as atitudes destes personagens obviamente criados para nos retratar.

Sentimentos de abandono, rejeição, raiva, alívio e saudade transparecem na aventura, trazendo rara complexidade psicológica para uma obra voltada ao público familiar.

O diretor Pablo Berger evita a metáfora óbvia do robô enquanto estrangeiro ou figura explorada pela maioria. Pelo contrário, concebe uma sociedade acolhedora, onde a constituição maquínica do personagem não surpreende ninguém. Nas praças, os transeuntes se olham nos olhos, sorriem aos anônimos e cantam em uníssono. O caráter musical da obra, que inclui números expressivos de dança (vide o sapateado no campo de margaridas) imagina um senso de coletividade e união próximo da utopia.

A música desempenha um papel fundamental face à ausência de diálogos. O projeto traz algumas frases em inglês estampadas nas placas e propagandas na televisão, porém evita que seus protagonistas pronunciem uma palavra sequer. Assim, as inúmeras canções da trilha sonora servem a comentar o estado de espírito de um e outro (com letras que evocam a solidão, ou o prazer de encontrar um amigo) e a determinar o estado geral da ambientação (feliz, festiva, melancólica, tensa). 

É certo que, em diversos momentos, o roteiro se ressente da ausência de falas, sobretudo quando Dog e o Robô precisam dar ordens um ao outro. Nesta hora, os olhos apontam ao local onde o colega deveria ir, de modo ainda pouco claro em suas intenções. São raros os filmes que suprimem por completo a falas sem provocar a sensação de que a palavra era importante em algum instante específico. Mesmo assim, os produtores preferem a universalidade da proposta, e a facilidade de exportar a obra sem diálogos a maior número de países — a distribuição já está garantida no Brasil, por exemplo.

No entanto, o roteiro se sai globalmente bem na tarefa de desenvolver as transformações bruscas na dupla central, sobretudo a partir do principal conflito do longa-metragem, quando o Robô apresenta mau funcionamento na praia, e precisa ser deixado pelo melhor amigo. Sentimentos de abandono, rejeição, raiva, alívio e saudade transparecem na aventura, trazendo rara complexidade psicológica para uma obra voltada ao público familiar. Nenhum personagem se converte num herói virtuoso, nem na vítima lacrimosa: a direção preserva um olhar de contemplação, um tanto agridoce, mesmo em sequências de forte apelo emocional.

Talvez o roteiro pudesse se beneficiar de uma edição mais enxuta. Na tentativa de mostrar a vida de Dog e Robô quando se afastam, o segundo terço se arrasta em segmentos da pipa, do esqui, e da espera do colega enferrujado sobre a areia. É improvável que nenhum vigia enxergasse o corpo imenso do Robô durante tantos meses, ou que o cachorro nunca conseguisse expressar à autoridade a necessidade de voltar à praia fechada para resgatar o amigo. Entretanto, o aspecto lúdico do desenho justifica, ou pelo menos atenua, a maioria das incongruências.

No entanto, Robot Dreams demonstra a coragem ímpar, na conclusão, de evitar o final previsível, que vinha prometendo há mais de uma hora. Após uma passagem belíssima em termos de linguagem cinematográfica (o dueto imaginário de dança e canto entre duas pessoas ausentes), privilegia uma saída verossímil, e talvez menos recompensadora em termos de engajamento sentimental, do que recorrer a um otimismo mágico e reparador. Logo, o resultado se mostra mais adulto, e amargo, do que poderiam sugerir os traços simples e as cores fortes.

Entre os colegas críticos de cinema, levantou-se com frequência a possibilidade que Dog e Robô representem mais do que amigos. De fato, em diversas cenas, ambas figuras masculinas transmitem um amor que poderia ser lido como romântico. A interpretação LGBTQIA+ da fábula se sustenta em diversas passagens, embora seja rejeitada de maneira explícita pelos criadores. Ao final, o filme aborda as possibilidades de afeto na pós-contemporaneidade, incluindo o carinho entre dois homens. Sejam eles amantes ou amigos, a ousadia da abordagem se mantém intacta.

Robot Dreams (2023)
6
Nota 6/10

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