Fale Comigo (2022)

Meu demônio particular

título original (ano)
Talk To Me (2022)
país
Austrália
gênero
Terror
duração
95 minutos
direção
Danny Philippou, Michael Philippou
elenco
Sophie Wilde, Alexandra Jensen, Joe Bird, Otis Dhanji, Miranda Otto, Zoe Terakes, Chris Alosio, Marcus Johnson, Alexandria Steffensen
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Séculos se passaram, e agora a comunicação com espíritos malignos se tornou muito mais rápida e eficaz. Esqueça as frases da Bíblia em latim, os nomes diabólicos evocados em looping, as mesas de Ouija com copos deslizantes. Basta apertar uma mão em gesso, em forma de cumprimento, e pedir “Fale comigo”. A criatura se faz visível de imediato. Com mais uma frase, “Eu permito que você entre”, a experiência se torna completa, e a pessoa em questão passa a se comunicar com a voz estranha de um demônio qualquer. O efeito, juram os adolescentes, equivale ao barato de uma droga.

Fale Comigo interessa, de imediato, pela reconfiguração imediata da relação com o além. Desaparece o aspecto do suspense, o medo inerente ao ato de invocar uma força do mal. Nos filmes convencionais, os personagens hesitam: Serei atendido? O que esta criatura poderá me fazer? O controle, no caso, residia junto ao ser transcendental. Aqui, as regras e determinações são humanas: o mal atende a pedidos, prestando um serviço de imediato, sem falhas, na hora exigida. Quando os participantes estão fartos, apagam uma vela, tiram as mãos do objeto e acabou-se a brincadeira.

O conceito soa profundamente contemporâneo ao imaginar uma criatura feita para corresponder aos desejos humanos, saciar nossa curiosidade, nosso tédio, e oferecer belas imagens para postar nas redes sociais (os telefones celulares desempenham papel importante aqui). Até o inferno é personalizado aos traumas de cada um. O participante se humilha em frente à gravação dos colegas, no entanto, ganha a fama de pessoa corajosa, disposta a aderir às regras do grupo. A comunicação demoníaca se transforma numa variante 2.0 dos trotes escolares ou do bullying em turmas. 

A configuração sob medida se aplica à protagonista, Mia (Sophie Wilde). O filme gira em torno dela, para ela. As mortes servem a alertá-la, provocá-la, transmitir mensagens especificamente à menina órfã, que sofre com a perda da mãe e o consequente distanciamento do pai. Deparando-se com a possibilidade de falar com os mortos, a menina relativamente tímida embarca num vício em acessar o além. Para ela, o mundo assustador dos mortos se traduz numa fantasia escapista, onde poderá eventualmente falar com a mãe, em contraste com a solidão real. Mia não manifesta medo destas forças; ela as deseja.

O conceito soa profundamente contemporâneo ao imaginar uma criatura feita para corresponder aos desejos humanos, saciar nossa curiosidade, nosso tédio, e oferecer belas imagens para postar nas redes sociais.

O projeto pode ser lido, numa primeira instância, enquanto metáfora do luto. A garota se recusa a matar um canguru agonizante na estrada, devido ao medo da morte e à responsabilização na morte de outros. Ora, a narrativa se encarregará de atribuir um número considerável de pessoas falecidas às atitudes da menina. Reside um aspecto perverso, uma terapia de choque ao amarrar a garota a uma cadeira (literalmente) e forçá-la a se confrontar ao trauma não-elaborado. Para se descobrir capaz de morrer, a estudante precisa se descobrir capaz de matar. 

Há uma sugestão nada banal na ideia de que todo ser humano poderia tirar a vida de outros, dadas as circunstâncias corretas. Por isso, os alvos preferenciais deste demônio cruelmente eficaz (por acelerar o processo de cura dela) são pessoas amadas, próximas, ou indefesas. Ao invés de provocar a carnificina sozinho, o adversário maligno induz a inocente protagonista a fazê-lo em seu nome, o que produz um efeito muito mais interessante. O elemento da pressão coletiva se estende à lavagem cerebral provocada pelos demônios. 

Outra possibilidade de leitura reside numa alegoria dos estados de saúde mental. Quando abraça a fantasia por completo, em detrimento da realidade, a heroína se vê incapaz de discernir entre o real e o falso, entre o mundo e sua projeção desejosa nele. Os atos de violência cometidos por suas mãos remetem aos gestos desesperados de uma pessoa esquizofrênica, ou com sintomas graves de alguma outra psicopatia. Ela acredita fazer o bem ao exterminar pessoas que, no seu entendimento, estariam em sofrimento grande demais (retomando a metáfora do canguru). 

A vertente psicológica é reforçada numa cena de hospital, onde a possibilidade de intoxicação de um garoto, ferido após uma das festas mediúnicas, é descartada. “Eu deveria ter entendido que ele somente passou por um surto, mas não queria aceitar isso”, confessa a mãe (Miranda Otto, excelente em força e humor). Neste meio, os personagens são frágeis, tímidos, inseguros, ou então agressivos por medo de serem atacados antes. Sophie Wilde, Alexandra Jensen e Joe Bird, o trio central, reforça a inadequação e o sentimento de não pertencimento nos olhares e gestos. Eles ajudam a compor uma traumática e potente trama de passagem à fase adulta.

Neste contexto, Fale Comigo (Talk To Me, no original) permite que o espectador se posicione tanto junto à garota, em defesa dela, quanto junto aos amigos e familiares gentis e solícitos que buscam capturá-la após um novo surto. Ela deixa de se posicionar enquanto vítima lutando contra tudo e todos — pelo contrário, são os outros que precisam fugir dela. Há uma inversão de valores interessante ao reposicionar a mocinha em vilã bem-intencionada, ou assassina involuntária. O demônio se prova um exímio manipulador, dotado de inegável poder de sedução (em diversas cenas, o horror se combina com um comportamento sexual).

Nem tudo são flores, no entanto. O longa-metragem se rende a tiques desgastados do horror, a exemplo das casas inexplicavelmente escuras, enquanto as aparições demoníacas exploram recursos de maquiagem e atuação pouco criativos (qualquer espectador de terror já terá visto criaturas idênticas em centenas de filmes anteriores). Ressalvas à parte, o projeto demonstra a vontade de adequar os cânones do terror à geração dos millennials, sem apelar aos sustos fáceis, nem à montagem fragmentada. Há outras formas de canalizar os desejos e traumas específicos da juventude conectada, como bem entendem os diretores Danny e Michael Philippou, egressos do YouTube.

Fale Comigo (2022)
7
Nota 7/10

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