Veja por Mim (2021) se insere num subgrupo muito específico dos suspenses: em primeiro lugar, constitui uma trama de invasão doméstica (quando ladrões adentram uma casa para roubar, e então descobrem a presença de pessoas no imóvel) e, mais especificamente, o home invasion envolvendo pessoas com alguma forma de deficiência. A franquia O Homem nas Trevas (2016) parte da intrusão na casa de um sujeito solitário e cego, enquanto Hush (2016) leva a mesma premissa à casa isolada de uma mulher surda.
A deficiência, neste caso, é vista a princípio enquanto dificuldade suplementar para a vítima, e acréscimo de tensão à trama. Se a resistência contra sujeitos perigosos apresenta dificuldades para uma pessoa sozinha, dotada de visão e audição, o que dizer de uma garota adolescente cega, presa dentro de uma casa que nem sequer conhece? A assimetria de poder (três homens armados e fortes contra uma menina incapaz de enxergar) se converte no motor da produção canadense.
Nestes casos citados, os roteiros insistem que, apesar da aparência de desvantagem, a deficiência se converte numa qualidade ao indivíduo atacado, quando precisa revidar. O militar cego de O Homem nas Trevas decide apagar as luzes da casa, quando passa a ter primazia em relação aos oponentes, e a moradora surda de Hush demonstra instintos aguçados de sobrevivência.
Assim, idealiza-se as minorias, transformadas em figuras munidas de uma vontade inigualável, um senso moral impecável e uma capacidade ímpar de superar obstáculos, pois enfrentaram várias dificuldades na vida até então. A romantização do sofrimento, ou da privação, sempre afetou o retrato das minorias nos cinemas, em especial dos personagens negros e gays. Talvez tenhamos chegado à fase desta representação heroica e martirizante dos deficientes.
A romantização do sofrimento, ou da privação, sempre afetou o retrato das minorias nos cinemas, em especial dos personagens negros e gays. Talvez tenhamos chegado à fase desta representação heroica e martirizante dos deficientes.
No início, entretanto, Veja por Mim aparenta romper com quase todos esses problemas. Sophie (Skyler Davenport) é uma antiga esquiadora profissional que precisou abandonar o esporte devido ao problema degenerativo na retina. Seu percurso de atleta é apresentado somente via pequenos indícios, sem qualquer diálogo explicativo. A menina se mostra arredia com a mãe, além de aproveitadora: ela rouba as casas quando aceita cuidar de cachorros e gatos enquanto os donos viajam.
A jovem se afasta, portanto, da garota bondosa atacada por vilões perversos. Ela tampouco demonstra uma capacidade sobre-humana de sobrevivência. Assim que três homens adentram o casarão onde se encontra, ela se apavora e foge como qualquer outra pessoa o faria. Isso a torna acessível, digna de identificação com o espectador. Cega ou não, apresenta as mesmas inseguranças e atitudes de qualquer outra pessoa em situação semelhante.
O diretor Randall Okita atenua os extremos ao desenhar vilões falhos, de moral ambígua, e dispostos a negociar com a adolescente que, por sua vez, tenta tirar proveito do assalto. Os melhores aspectos do roteiro se encontram na alternância — provisória, infelizmente — do controle narrativo: ora os homens dominam o tabuleiro do jogo, ora Sophie conquista a dianteira deste cenário. O desfecho soa mais imprevisível do que uma enésima revanche exemplar de tipos fragilizados contra seus algozes.
No fundo, este projeto e os semelhantes, descritos acima, podem ser lidos enquanto fábulas de vingança e empoderamento. Os sujeitos que procuram abusar da confiança da ex-esquiadora, devido à cegueira, representam todos os indivíduos dotados de visão que já menosprezaram ou se aproveitaram da heroína. Por isso, ao revidar espetacularmente contra os oponentes, ela dá o troco numa sociedade capacitista, masculina e violenta. A vitória dos Davis contra seus Golias representa uma fábula social de alcance mais amplo.
Esta leitura é favorecida pela aliança feminina formada por duas garotas que se conhecem apenas via aplicativo de celular. Sophie recorre ao app “veja por mim”, que dá nome ao longa-metragem, quando atendentes do outro lado da linha ajudam pessoas cegas a enxergarem a data de validade de uma caixa de leite, ou encontrarem seu destino quando viajam a um local desconhecido. Ambas são figuras tolhidas de seu potencial: a primeira, uma esportista frustrada, e a segunda, uma ex-militar afastada com histórico de vícios e violências. Uma servirá de guia à outra, assim como no esporte.
A narrativa sabe utilizar o potencial dos telefones celulares para alavancar a narrativa. Subitamente, o espectador se encontra diante de três pontos de vista alternados: aquele da garota cega (representado por imagens de profundidade de campo reduzida), aquele da ajudante via aplicativo (que enxerga mal, sem contexto, através de captações tremidas do celular alheio), e por fim, aquele do próprio celular, apontado a esmo por uma jovem que não enxerga.
Existe uma triangulação do olhar, como se Sophie se transformasse, contra a sua vontade, em diretora das imagens que oferece a Kelly (Jessica Parker Kennedy). Já o espectador testemunha uma combinação voluntariamente truncada das três perspectivas, de modo que sempre reste uma dúvida: o ladrão está perto? A polícia está chegando? Esta escada leva a um cômodo seguro, ou ao encontro com os invasores? A perda de referências se converte em conceito de mise en scène.
Okita possui uma maneira elegante de retratar espaços e tempos. O filme trabalha com enquadramentos em scope, câmeras fixas e movimentos de câmera fluidos e discretos. A solução encontrada para representar o impedimento da visão transparece ousadia e criatividade limitadas: novamente, encontramos os fundos desfocados, junto a efeitos sonoros exagerados para sugerir uma audição excelente e compensatória. No entanto, estes elementos conhecidos são bem utilizados: o cineasta, por exemplo, sabe explorar dramaticamente o belo espaço do casarão isolado.
A este propósito, o suspense possui um ritmo enxuto e eficaz: não há uma cena sequer sem propósito, ou uma única sequência alongada demais. O autor se dedica ao arroz com feijão numa eficiência exemplar: a tensão contamina todas as cenas, sem exceção, incluindo um número impressionante de reviravoltas orgânicas, ou seja, verossímeis na trama. Ele compensa a ambição reduzida com um domínio notável dos códigos do gênero.
Devido a tantas qualidades de montagem, fotografia e som, é uma pena que o desfecho se renda aos clichês que tinha evitado sabiamente até então. Sophie converte-se numa super-heroína, dotada de estratégias infalíveis e maestria no tiro. Armas caídas no chão serão disputadas por dois corpos que lutam; a militar se divertirá com jogos de tiro; a ex-atleta aprenderá a confiar em si própria. O dilema plausível se resolve de maneira quase mágica.
Ressalvas à parte, o resultado constitui uma bela sessão de cinema B, no sentido de possuir visivelmente poucos recursos, além de diretores e atores desconhecidos, sem qualquer perspectiva de romper com seus referenciais. No entanto, Veja por Mim oferece um suspense mais inteligente e competente do que a média. Embora ainda tenha problemas na representação da deficiência, consegue dar um passo além em comparação a títulos similares.
Talvez o próximo passo seja os produtores, enfim, contratarem atores e atrizes cegos para interpretarem personagens cegos. Até quando vamos aceitar a deficiência enquanto “desafio cênico”, “trabalho de composição”, ao invés de uma identidade cultural e social específica? Se repudiamos o transfake para personagens transexuais, um raciocínio semelhante deveria se aplicar às pessoas com deficiências.