Veja por Mim (2021)

O deficiente como alvo

título original (ano)
See For Me (2021)
país
Canadá
gênero
Suspense, Policial
duração
92 minutos
direção
Randall Okita
elenco
Skyler Davenport, Jessica Parker Kennedy, Laura Vandervoort, Natalie Brown, Keaton Kaplan, George Tchortov, Pascal Langdale, Joe Pingue, Emily Piggford, Kim Coates
Visto em
Cinemas

Veja por Mim (2021) se insere num subgrupo muito específico dos suspenses: em primeiro lugar, constitui uma trama de invasão doméstica (quando ladrões adentram uma casa para roubar, e então descobrem a presença de pessoas no imóvel) e, mais especificamente, o home invasion envolvendo pessoas com alguma forma de deficiência. A franquia O Homem nas Trevas (2016) parte da intrusão na casa de um sujeito solitário e cego, enquanto Hush (2016) leva a mesma premissa à casa isolada de uma mulher surda.

A deficiência, neste caso, é vista a princípio enquanto dificuldade suplementar para a vítima, e acréscimo de tensão à trama. Se a resistência contra sujeitos perigosos apresenta dificuldades para uma pessoa sozinha, dotada de visão e audição, o que dizer de uma garota adolescente cega, presa dentro de uma casa que nem sequer conhece? A assimetria de poder (três homens armados e fortes contra uma menina incapaz de enxergar) se converte no motor da produção canadense.

Nestes casos citados, os roteiros insistem que, apesar da aparência de desvantagem, a deficiência se converte numa qualidade ao indivíduo atacado, quando precisa revidar. O militar cego de O Homem nas Trevas decide apagar as luzes da casa, quando passa a ter primazia em relação aos oponentes, e a moradora surda de Hush demonstra instintos aguçados de sobrevivência. 

Assim, idealiza-se as minorias, transformadas em figuras munidas de uma vontade inigualável, um senso moral impecável e uma capacidade ímpar de superar obstáculos, pois enfrentaram várias dificuldades na vida até então. A romantização do sofrimento, ou da privação, sempre afetou o retrato das minorias nos cinemas, em especial dos personagens negros e gays. Talvez tenhamos chegado à fase desta representação heroica e martirizante dos deficientes.

A romantização do sofrimento, ou da privação, sempre afetou o retrato das minorias nos cinemas, em especial dos personagens negros e gays. Talvez tenhamos chegado à fase desta representação heroica e martirizante dos deficientes.

No início, entretanto, Veja por Mim aparenta romper com quase todos esses problemas. Sophie (Skyler Davenport) é uma antiga esquiadora profissional que precisou abandonar o esporte devido ao problema degenerativo na retina. Seu percurso de atleta é apresentado somente via pequenos indícios, sem qualquer diálogo explicativo. A menina se mostra arredia com a mãe, além de aproveitadora: ela rouba as casas quando aceita cuidar de cachorros e gatos enquanto os donos viajam.

A jovem se afasta, portanto, da garota bondosa atacada por vilões perversos. Ela tampouco demonstra uma capacidade sobre-humana de sobrevivência. Assim que três homens adentram o casarão onde se encontra, ela se apavora e foge como qualquer outra pessoa o faria. Isso a torna acessível, digna de identificação com o espectador. Cega ou não, apresenta as mesmas inseguranças e atitudes de qualquer outra pessoa em situação semelhante. 

O diretor Randall Okita atenua os extremos ao desenhar vilões falhos, de moral ambígua, e dispostos a negociar com a adolescente que, por sua vez, tenta tirar proveito do assalto. Os melhores aspectos do roteiro se encontram na alternância — provisória, infelizmente — do controle narrativo: ora os homens dominam o tabuleiro do jogo, ora Sophie conquista a dianteira deste cenário. O desfecho soa mais imprevisível do que uma enésima revanche exemplar de tipos fragilizados contra seus algozes.

No fundo, este projeto e os semelhantes, descritos acima, podem ser lidos enquanto fábulas de vingança e empoderamento. Os sujeitos que procuram abusar da confiança da ex-esquiadora, devido à cegueira, representam todos os indivíduos dotados de visão que já menosprezaram ou se aproveitaram da heroína. Por isso, ao revidar espetacularmente contra os oponentes, ela dá o troco numa sociedade capacitista, masculina e violenta. A vitória dos Davis contra seus Golias representa uma fábula social de alcance mais amplo.

Esta leitura é favorecida pela aliança feminina formada por duas garotas que se conhecem apenas via aplicativo de celular. Sophie recorre ao app “veja por mim”, que dá nome ao longa-metragem, quando atendentes do outro lado da linha ajudam pessoas cegas a enxergarem a data de validade de uma caixa de leite, ou encontrarem seu destino quando viajam a um local desconhecido. Ambas são figuras tolhidas de seu potencial: a primeira, uma esportista frustrada, e a segunda, uma ex-militar afastada com histórico de vícios e violências. Uma servirá de guia à outra, assim como no esporte. 

A narrativa sabe utilizar o potencial dos telefones celulares para alavancar a narrativa. Subitamente, o espectador se encontra diante de três pontos de vista alternados: aquele da garota cega (representado por imagens de profundidade de campo reduzida), aquele da ajudante via aplicativo (que enxerga mal, sem contexto, através de captações tremidas do celular alheio), e por fim, aquele do próprio celular, apontado a esmo por uma jovem que não enxerga. 

Existe uma triangulação do olhar, como se Sophie se transformasse, contra a sua vontade, em diretora das imagens que oferece a Kelly (Jessica Parker Kennedy). Já o espectador testemunha uma combinação voluntariamente truncada das três perspectivas, de modo que sempre reste uma dúvida: o ladrão está perto? A polícia está chegando? Esta escada leva a um cômodo seguro, ou ao encontro com os invasores? A perda de referências se converte em conceito de mise en scène.

Okita possui uma maneira elegante de retratar espaços e tempos. O filme trabalha com enquadramentos em scope, câmeras fixas e movimentos de câmera fluidos e discretos. A solução encontrada para representar o impedimento da visão transparece ousadia e criatividade limitadas: novamente, encontramos os fundos desfocados, junto a efeitos sonoros exagerados para sugerir uma audição excelente e compensatória. No entanto, estes elementos conhecidos são bem utilizados: o cineasta, por exemplo, sabe explorar dramaticamente o belo espaço do casarão isolado.

A este propósito, o suspense possui um ritmo enxuto e eficaz: não há uma cena sequer sem propósito, ou uma única sequência alongada demais. O autor se dedica ao arroz com feijão numa eficiência exemplar: a tensão contamina todas as cenas, sem exceção, incluindo um número impressionante de reviravoltas orgânicas, ou seja, verossímeis na trama. Ele compensa a ambição reduzida com um domínio notável dos códigos do gênero.

Devido a tantas qualidades de montagem, fotografia e som, é uma pena que o desfecho se renda aos clichês que tinha evitado sabiamente até então. Sophie converte-se numa super-heroína, dotada de estratégias infalíveis e maestria no tiro. Armas caídas no chão serão disputadas por dois corpos que lutam; a militar se divertirá com jogos de tiro; a ex-atleta aprenderá a confiar em si própria. O dilema plausível se resolve de maneira quase mágica.

Ressalvas à parte, o resultado constitui uma bela sessão de cinema B, no sentido de possuir visivelmente poucos recursos, além de diretores e atores desconhecidos, sem qualquer perspectiva de romper com seus referenciais. No entanto, Veja por Mim oferece um suspense mais inteligente e competente do que a média. Embora ainda tenha problemas na representação da deficiência, consegue dar um passo além em comparação a títulos similares. 

Talvez o próximo passo seja os produtores, enfim, contratarem atores e atrizes cegos para interpretarem personagens cegos. Até quando vamos aceitar a deficiência enquanto “desafio cênico”, “trabalho de composição”, ao invés de uma identidade cultural e social específica? Se repudiamos o transfake para personagens transexuais, um raciocínio semelhante deveria se aplicar às pessoas com deficiências.

Veja por Mim (2021)
6
Nota 6/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.