Goliath (2022)

A imagem do poder

título original (ano)
Goliath (2022)
país
Cazaquistão, Rússia
gênero
Drama, Policial
duração
93 minutos
direção
Adilkhan Yerzhanov
elenco
Berik Aytzhanov, Daniyar Alshinov, Dmitrij Chebotarev, Alexandra Revenko, Rabiya Abish, Yerken Gubashev
visto em
Festival de Veneza 2022

Goliath representa um cinema intensamente formalista. Isso significa que o cineasta Adilkhan Yerzhanov demonstra um prazer notável em calcular os enquadramentos, a profundidade de campo, a luz, os lentos movimentos de câmera. O trabalho da direção se aproxima bastante daquela da direção de fotografia, no sentido que a matéria modelada pelos criadores reside sobretudo na textura da imagem, na criação dos espaços, volumes e tempos.

Os personagens chegam depois nesta equação. Isso não significa que sejam pouco importantes, mas é evidente que são solicitados pelo criador a pararem no terço exato do quadro, posarem no canto onde são indicados, de modo que a luz reflita melhor, e não bloqueiem a visão de outro personagem ao fundo. Criam-se imagens como quem elabora pinturas, ou melhor, ensaios fotográficos: embora se encontre em locações reais, a céu aberto, o cazaque aparenta ajustar os refletores de um estúdio e posicionar seus modelos diante de um fundo colorido.

Esta escolha dispensa qualquer valor inerente: há excelentes filmes formalistas, propostos por grandes cineastas e pensadores da imagem (digamos, Stanley Kubrick), assim como existem gestos egocêntricos partindo de autores vaidosos e rebeldes (digamos, Alejandro González Iñárritu e Gaspar Noé). Ao mesmo tempo, pode-se citar preciosos criadores de um cinema naturalista e espontâneo (Naomi Kawase, por exemplo), e outros para quem o realismo implica em desleixo e aleatoriedade. Em outras palavras, nenhuma linguagem carrega valor em si.

A reflexão serve a pensar as escolhas específicas do longa-metragem cazaque que, felizmente, sabe fazer bom uso da astúcia da direção. O projeto se inspira em gêneros cristalizados no imaginário da cinefilia ocidental: os suspenses de máfia, na primeira metade, e os faroestes, na segunda metade. Ele se apropria destes códigos para ilustrar a ascensão de grupos milicianos num vilarejo, proporcionando um misto de proteção e terror, de benesses e controle sobre as ações dos habitantes. Assim, oferece-se casa e comida em troca de silêncio quanto às transações criminosas organizadas pelo grupo.

Apesar do controle intenso da imagem, o diretor nunca se mostra exagerado. Ele prefere um minimalismo sugestivo, do tipo que acredita na capacidade do espectador em compreender metáforas.

É curioso que uma forma de cinema tão propensa ao pop (pelo menos, em nosso imaginário contemporâneo e ocidental) se encontre com planos longuíssimos, imagens fixas, valorizando os espaços infinitos das planícies locais, e a solidão de pequenos insurgentes no território vasto. Pela forma, sozinha, Yerzhanov sugere a pequenez de Arzu (Berik Aitzhanov) em meio ao ambiente, a solidão que vive nas pequenas casas isoladas, e o poder do chefe Poshaev (Daniyar Alshinov) quando surge no horizonte, com seus capangas e carros luxuosos. Ergue-se um imaginário, uma ambientação de poderes, ao invés de descrevê-la via diálogos.

A imagem segue contando uma história que o roteiro evita descrever por si mesmo. A maneira soturna como o pobre herói dá banho na filha pequena transmite o estado de luto, a resiliência e a raiva contida no sujeito cuja esposa foi assassinada pelos milicianos. Adiante, uma viúva em busca de afeto apenas levanta o queixo lentamente, em contraluz, e percebemos seu interesse amoroso por Arzu. Sentado na mesa de uma cantina local, o protagonista percebe carros vindo no horizonte, e através de um microscópico movimento de câmera, notamos a gravidade da situação.

Isso significa que, apesar do controle intenso da imagem, o diretor nunca se mostra exagerado, rocambolesco. Ele prefere um minimalismo sugestivo, do tipo que acredita na capacidade do espectador em compreender metáforas e lentas gradações da tensão. Poucos autores operam o plano fixo com tamanha desenvoltura: aqui, a imagem parada nunca se confunde com tempo morto, pelo contrário: existe uma infinidade de conflitos ocorrendo dentro de cada quadro, e às vezes, em camadas diferentes da profundidade de campo. Em paralelo, o espaço extracampo se enriquece pela sugestão de sons e perigos.

Quando a câmera decide se movimentar, ela o faz com cuidado, lentamente, até percorrer vários metros rumo à entrada de uma casa onde a gangue de Poshaev procura pela próxima vítima. Há uma tensão interessante na aparência de contemplação e naturalidade para retratar mortes e ameaças. Muitos cineastas prefeririam a estética da urgência, com a câmera tremida na mão, a trilha sonora intensa. Yerzhanov valoriza o silêncio, a espera, o indício de que tal coadjuvante possa estar entrando em casa a qualquer momento, para se encontrar sob uma rajada de balas.

O elenco é coordenado para atenuar maniqueísmos e facilidades de composição. Há diferentes personalidades e posicionamentos políticos no grupo (em relação à venda de drogas, ou às estratégias de ataque), enquanto o próprio Arzu se mostra ambivalente quanto ao plano de ação. Inicialmente, mostra-se abatido e conivente, depois, empoderado pelo auxílio dos algozes de sua esposa e, por fim, possivelmente vingativo. O filme evita antecipar ao espectador o que pode ocorrer. 

Em consequência, descobrimos grandes eventos somente quando se encontram, abruptamente, diante dos nossos olhos — uma característica mais propensa ao naturalismo do que ao formalismo, digamos. Por trás das luzes impecáveis, das composições de aparência renascentista e dos corpos ocupando partes exatas do quadro, existe a vontade de valorizar a tomada de poder de um homem comum, deficiente, face a uma corporação gigantesca. As palavras de Maquiavel interrompem a narrativa com frequência para nos avisar sobre as regras perversas do poder: “Existem dois métodos de luta: pela lei e pela força”

Goliath se inicia como um ótimo filme de máfia, para abraçar, paulatinamente, as regras do faroeste. Entram em cena os cavalos, a planície cazaque, a poeira levantada pelo percurso do justiceiro território adentro, até o inevitável duelo ao pôr do sol. A trilha sonora surge em instantes pontuais e raros, como forma de concessão ao gênero adorado pelo diretor. Yerzhanov sabe homenagear o cinema clássico e estrangeiro, sem deixar de efetuar um retrato potente de seu próprio país, demonstrando um posicionamento político firme e questionador. Trata-se de um interessante estudo sobre o poder dos homens, das estruturas e das imagens.

Goliath (2022)
9
Nota 9/10

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