Skin Deep (2022)

O corpo que você veste

título original (ano)
Skin Deep (2022)
país
Alemanha
gênero
Drama, Fantasia
duração
103 minutos
direção
Alex Schaad
elenco
Mala Emde, Jonas Dassler, Dimitrij Schaad, Maryam Zaree, Thomas Wodianka, Edgar Selge
visto em
Festival de Toronto 2022

Imagine que você pudesse trocar de corpo com outra pessoa. Ambos entram num dispositivo recluso, efetuam um procedimento secreto e, passadas algumas horas, acordam numa aparência totalmente diferente. Experimentam uma nova pele, cabelo, olhos, genitália. Passam a ter outra altura, voz e, portanto, uma nova percepção de mundo. Passados alguns dias, o procedimento é desfeito sem sequelas para os envolvidos. O procedimento funcionaria como uma viagem, um passeio. Você participaria?

Skin Deep se situa nesta ilha isolada ao norte da Europa onde casais trocam aleatoriamente de corpo com outros frequentadores. O potencial da premissa é gigantesco para discutir identidade, subjetividade, sexualidade e gênero. O que ocorre a uma mulher que “empresta” um corpo masculino? Ao indivíduo branco na pele de um negro? À criança transmutada em idoso? O que ocorre ao seu desejo, aos anseios? O diretor Alex Schaad dissocia, de maneira abrupta e espetacular, a identidade de seu invólucro, chamando atenção às especificidades e à conexão óbvia entre os dois.

O conceito também permite fugir aos clichês desgastados das fábulas (cômicas, em sua maioria) a respeito da troca de corpos. Aqui, as substituições não ocorrem por um acidente indesejável, muito pelo contrário, os personagens se deslocam até aquela localidade na intenção explícita de se submeter ao processo. Os câmbios podem ser interrompidos e desfeitos a qualquer momento, mediante a vontade de uma das duas partes envolvidas. Assim, descarta-se o aspecto de maldição, erro do destino. Ao invés de se encontrar “preso” na corporalidade alheia, os participantes a vestem como quem troca de roupa.

Acima de tudo, a tecnologia fictícia possui um caráter terapêutico, impedindo a noção de urgência, ou de desespero da descoberta da troca. Esqueça as mulheres divertindo-se com seus novos pênis, ou os homens chocados com a maciez de suas peles. O cineasta evita transformar a premissa numa fábula transfóbica a respeito de indivíduos que ousam mergulhar num corpo distinto, apenas para se tornarem figuras monstruosas e deslocadas, até retornarem aos corpos “de verdade”. Nas comédias, é de praxe se encerrar com a volta “ao normal”, com homens e mulheres agindo como se esperaria deles. Felizmente, Schaad escapa ao caminho perigoso.

Talvez o cineasta se mostre mais encantado com as possibilidades mágicas da transição do que com a pergunta essencial a respeito dos motivos que levariam as pessoas a passar por isso.

Em contrapartida, seria inadequado pensar o longa-metragem enquanto metáfora da transexualidade. Os personagens não possuem a identidade de outro gênero, apenas saciam a curiosidade de passar alguns dias no organismo de uma mulher, de um velho, de desconhecido. A construção identitária de indivíduos trans decorre de um longo processo de amadurecimento face a uma sociedade violenta. Há uma certeza e uma força muito grandes no gesto de se perceber com tal gênero e enfrentar preconceitos no intuito de ser tratado com a identidade real. 

A colônia proposta pela obra alemã é impregnada pela leveza, pelo gesto inconsequente de mudar e se desfazer, com um teor de brincadeira que jamais poderia corresponder a algo tão profundo e enraizado quanto à identidade de gênero. Skin Deep estaria mais próximo da investigação pós-moderna pelo reconhecimento de uma essência fluida, neutra, queer e afins. Posto que os câmbios ocorrem numa ilha isolada, onde a integralidade dos turistas passa pelo processo (incluindo diretores e funcionários), não existe uma sociedade ao redor para julgá-los e acusá-los. Todos fazem parte do jogo, o que retira o caráter de marginalidade e minoria. A transexualidade exigiria uma leitura mais complexa do que esta fábula se dispõe a oferecer.

Justamente, parece faltar à proposta uma noção de alteridade, de mundo lá fora. Compreende-se que Schaad não deseje transformar a narrativa numa ficção científica, evitando descrever de que maneira a troca de corpos é efetuada. No entanto, como a ilha se relaciona com os povoados vizinhos? As cidades ao redor estão cientes do que ocorre ali? Como o exercício psicológico afeta os viajantes depois, quando retornam às vidas e corpos de antes? Não sabemos. O autor evita investir em personagens com famílias, trabalhos, filhos ou demais laços e pendências a resolver em suas terras de origem. Ao que tudo indica, poderiam permanecer na olha caso o desejassem.

A seleção do quarteto principal também reflete certa facilidade e conveniência. Leyla (Mala Emde) e Tristan (Jonas Dassler), um casal jovem, branco, cis, heterossexual e de classe média trocam de corpo com Fabienne (Maryam Zaree) e Mo (Dimitrij Schaad), outro casal jovem, branco, cis, heterossexual e de classe média. A única descoberta real neste caso diz respeito ao rapaz magro, que se diverte com uma barriga saliente pela primeira vez na vida. Personagens negros serão secundários, e mesmo a importante questão das homoafetividade resta em segundo plano. 

Para que o espectador não se perca, letreiros avisam esporadicamente quem se encontra na aparência de quem. Os atores exageram um tanto o tom para que as guinadas sejam visíveis: Leyla está profundamente depressiva (o que torna improvável a decisão de ir à ilha), e Mo consiste num sujeito extrovertido, inconveniente e falastrão, em tintas que apenas o humor físico conseguiria trazer. Uma vez efetuada a mudança, cabe a Jonas Dassler encarnar o sujeito cartunesco, enquanto Maryam Zaree busca saturar o olhar pesado e a fala gaguejante da protagonista.

Talvez o cineasta se mostre mais encantado com as possibilidades mágicas da transição do que com a pergunta essencial a respeito dos motivos que levariam as pessoas a passar por isso. Em se tratando de um procedimento terapêutico, de que maneira exatamente a modificação externa afeta os participantes? O que pregam, exatamente, os criadores da técnica, e como desenvolveram o mecanismo? Schaad combina uma dupla ultra tímida com outra extrovertida até demais, contentando-se com o câmbio simétrico entre ambos, embora as reconfigurações de outros espectros sociais soasse muito mais ousada — sobretudo no caso da menina vivendo no corpo do próprio pai. 

Esteticamente, o autor evita um estranhamento, um caráter sombrio, perverso ou patológico que Cronenberg ou Haneke atribuiriam à mesma trama. Ele filma esta incursão através de planos de conjunto, imagens extremamente nítidas e coloridas, fundos infinitos, em plena sensação de normalidade. Pelo aspecto imediato, poderia se falar num filme turístico, ou um filme de férias, o que corresponde de fato ao caso do quarteto central. Caberá ao espectador determinar se esse despojamento produz um efeito benéfico (por evitar julgamentos morais e naturalizar a vida em outros corpos) ou maléfico (por não explorar, via linguagem, a psicologia torturada dos participantes).

Skin Deep se encerra com uma iniciativa que talvez chame mais atenção pela astúcia da ideia do que por sua execução. Partindo de um ponto de vista de aparência ultra contemporânea e controversa, o diretor parte para caminhos seguros, simples e clássico-narrativos, desviando dos aspectos espinhosos da identidade. Para quem espera uma fábula de urgência, encontrará um drama a respeito de uma juventude depressiva e lânguida, amando-se dolorosamente no ritmo de um acampamento de meditação e cura espiritual.

Skin Deep (2022)
6
Nota 6/10

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