Visões do Império (2020)

Arquivo, manual de instruções

título original (ano)
Visões do Império (2020)
país / gênero
Portugal / Documentário
duração
93 minutos
direção
Joana Pontes
Com
Sandra Paraíso, Eduardo Martinho, Filipa Lowndes Vicente, Catarina Mateus, Miguel Bandeira Jerónimo, Margarida Dias da Silva, Afonso Ramos, Carmen Rosa
visto em
Cinemas

Visões do Império (2020) parte de um posicionamento político fundamental: recontar a história do império colonial português pelo ponto de vista das pessoas esquecidas, suprimidas ou desumanizadas no processo. Trata-se em especial dos indivíduos negros subjugados e exterminados durante a expansão do regime. A diretora portuguesa Joana Pontes expõe sua relação conflituosa com os conterrâneos que se gabam de dias felizes graças a um processo de expansão e conquistas, obtidos a custo do sofrimento alheio. Por isso, explica desde o princípio suas intenções: “A ideia para este filme começou com este livro que fala de fotografias das colônias”.

O teor confessional e metalinguístico se estende por todo o documentário. A cineasta menciona as feiras e bibliotecas que decide visitar, apresenta os especialistas com quem conversa, refere-se à história pessoal. Ela coloca a si própria enquanto narradora, abrindo o texto com uma apresentação clássica, e fechando a experiência com uma conclusão professoral. Há um teor tão honesto quanto humilde nesta abordagem no melhor estilo show and tell — mostra-se uma fotografia colonial, comenta-se o conteúdo, passa-se à imagem seguinte. A montagem parece folhear um álbum de retratos, com todo o caráter seguro e linear que este gesto pode representar.

Por um lado, o filme ostenta uma produção polida. Há um cuidado impecável de iluminação e enquadramentos em cada conversa ou filmagem de arquivos, enquanto os raros movimentos de câmera, envolvendo a diretora enquanto personagem, se mostram precisos, bem realizados. O som direto, geralmente em locais isolados e fechados, capta sem dificuldade as falas dos historiadores que elaboram seus discursos com eloquência exemplar. Os profissionais soam confortáveis diante das câmeras, transmitindo conhecimento desprovido de vaidades.

Por outro lado, a narrativa jamais disfarça a impressão de uma longa palestra a respeito da fotografia enquanto material de arquivo. A estrutura condiciona as imagens ao som: cada entrevistado descreve as fotografias selecionadas como se estivesse diante de uma sala repleta de alunos. O próprio filme pretende assumir a função de material de arquivo, uma espécie de metadocumento a respeito do colonialismo português. Explica-se com calma o racismo no olhar dos fotógrafos às pessoas negras, o sensacionalismo na exposição de cadáveres em jornais, a importância do registro fotográfico para a biologia.

Visões do Império possui uma clareza excepcional em sua tese progressista e bem fundamentada. No entanto, resta ao espectador uma incômoda posição de passividade, apenas escutando o fluxo ininterrupto de falas. Nunca somos convidados a refletir por nós mesmos, formular teses próprias, contemplar imagens em silêncio, tomar posição diante de discursos contrários. Pelo contrário, os historiadores falam em uníssono, completando-se uns aos outros, e fundamentando sua tese graças à farta sucessão de exemplos. Falta atrito, volume e textura na argumentação e nas imagens que, humildemente, escondem-se por trás da importância do tema.

Visões do Império possui uma clareza excepcional em sua tese progressista. No entanto, resta ao espectador uma incômoda posição de passividade.

Em se tratando de uma arte referenciando a outra — uma experiência de cinema a respeito da análise de fotografias —, cabe questionar a maneira como estes registros em still são abordados. Durante os trinta minutos iniciais, Pontes filma apenas fotografias analógicas, em papel, seguradas ora por si mesma, ora pelos personagens. A escolha de manter o registro da imagem-sobre-imagem, ou seja, a fotografia enquanto tal, em papel, provoca uma maneira interessante de observar este material de arquivo, respeitando sua disposição original — algo importante para um filme que confere tamanho valor aos arquivos.

Ora, passado o terço inicial, as fotografias passam a ser digitalizadas, expostas de maneira convencional, ocupando a tela inteira, no centro do enquadramento, enquanto as vozes em off situam os anos, contextos e leituras históricas. Incomoda o fato que toda fotografia venha imediatamente pressignificada, acompanhada de uma explicação sobre como deveria ser lida pelo espectador. Paira a impressão de que o filme reproduz a experiência de uma visita a um museu, onde um guia generoso se posiciona diante de cada obra e dispara uma longa explicação acerca das origens, qualidades e valores das obras. Este dispositivo funciona muito bem na pedagogia, porém encontra limitações quando inserido numa obra de vocação artística.

Além disso, para um projeto que denuncia com tanta veemência o racismo da História e das imagens, incomoda a concentração quase exclusiva em historiadores brancos. A única mulher negra convidada a analisar as fotografias surge nos cinco minutos finais, numa espécie de pensamento a posteriori da montagem, ocupando uma duração inferior àquela dos colegas brancos que dominam o tempo de fala e o protagonismo. Outras relações com as fotografias poderiam aprofundar a discussão: o que fotógrafos contemporâneos, sociólogos, ativistas negros jovens ou antropólogos enxergariam a partir das mesmas imagens?

O questionamento mais forte diante do projeto não seria, portanto, de ordem racial, historiográfica nem de análise da imagem, mas sim relativo à linguagem cinematográfica. Embora se baseie num trabalho refinado de fotografia, som e montagem, eles se submetem a um formato engessado, que nunca permite à estética dialogar com o tema abordado. As fotografias coloniais permanecem na posição de objeto de estudo, enquanto o cinema se restringe a um veículo de comunicação. 

Que seleções da imagem o cinema poderia trazer a estes registros, para oferecer um novo ponto de vista ao espectador? Que tipo de leitura das cartas da época (e de textos contemporâneos) poderia se sobrepor aos materiais de antigamente para estabelecer uma ponte com o presente? Nós evoluímos, regredimos na representação das pessoas negras, e na leitura da história portuguesa? Esta competente aula de introdução à análise da imagem poderia resultar num filme de ambições superiores caso permitisse um olhar mais ambicioso à nossa relação com o imperialismo.

Visões do Império (2020)
6
Nota 6/10

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