“Para mim, é oito ou oitenta: o cinema precisa ser radical”, defende João Paulo Miranda Maria, diretor de Casa de Antiguidades

Desde o dia 21 de julho, as salas de cinema acolhem uma das obras brasileiras mais arriscadas e reconhecidas internacionalmente dos últimos dois anos: Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda Maria. O drama foi nosso único representante no Festival de Cannes em 2020, além de ter sido selecionado no Festival de Toronto.

No centro da trama se encontra Cristovam (Antônio Pitanga), operário de uma fábrica de leite. Transferido ao sul do país, numa antiga colônia austríaca, ele começa a sofrer o preconceito dos conservadores habitantes locais. Conforme evoca objetos e símbolos de uma religião pagã, o homem negro se torna alvo de violências crescentes, e ele não demora a revelar seus próprios preconceitos. O filme reúne cenas naturalistas e outras próximas da fantasia, numa jornada que remete ao sonho — ou talvez ao pesadelo.

O Meio Amargo conversou com o diretor a respeito do longa-metragem:

Por que quis situar a trama numa antiga colônia austríaca?

Na verdade, o filme se passa num tempo meio perdido. Tudo é atual, não criamos nada. O bar, o local onde os personagens almoçam, os grupos de dança típica existem de fato. Mas são arquiteturas antigas, em madeira, com a ideia da colônia, e as pessoas de fato falam alemão com sotaque local. Elas mantêm antiguidades, não só em termos de objetos, mas também de comportamento. Para mim, era a melhor maneira de criar uma analogia, e falar do que vejo no Brasil. Não é o caso de uma região pontual, queria mostrar que repetimos erros do passado, problemas de outras gerações. São coisas deixadas debaixo do tapete, mas elas voltam. Não queria datar o filme com uma época precisa. Parece que são os anos 1970, quase na ditadura, mas ao mesmo tempo pode ser hoje, porque nada ali foi feito pela direção de arte para parecer de época. Apenas tiramos celulares, smartphones, para fazer essa brincadeira.

A intolerância, estes monstros guardados no armário, este lado primitivo e arcaico sempre existiu.

Esta é uma fábula universal e atemporal, mas vemos paredes pichadas com “17″ e “Deus acima de todos”, que remetem especificamente ao Brasil atual.

O resultado de hoje é uma consequência de muitas gerações. A intolerância, estes monstros guardados no armário, este lado primitivo e arcaico sempre existiu. Agora a gente vê de uma maneira mais clara, através da política. Para mim, estes foram detalhes que quis deixar marcados, para sublinhar a conexão com os tempos de hoje. Mesmo que o 17 não seja mais 17, todo mundo sabe a que se refere. “Deus acima de todos” e outros slogans continuam. Mesmo que mudem certos números e nomes, vários erros se repetem. A intolerância vai e volta na nossa História; era importante deixar isso presente. Esta história pode acontecer hoje, mas é um resultado de outras épocas.

O diretor João Paulo Miranda Maria (à esquerda) durante as filmagens de Casa de Antiguidades.

Como compreende as atitudes deste herói? Ele é muito resistente, mas permanece silencioso, aturando várias agressões.

É uma resistência, uma força da natureza. Tem muita História, um grande peso por trás. A minha intenção, ao escolher o Antônio Pitanga, era carregar todo um peso da História — especificamente, a História do cinema brasileiro. Ele já trabalhou com vários grandes diretores, e era importante trazer isso. É um personagem que resiste, mas ao mesmo tempo, ele não é intocável. Ele também é sujo, e tem seu lado conservador, antiquado. Não existe uma noção clara de certo ou errado. Ele também está contaminado, não é um grande herói. Mas vai precisar acordar, em algum momento. Talvez Cristovam já seja velho demais para acordar. Está tarde para ele, mas quem sabe os outros, a exemplo das personagens femininas, possam fazer isso. Elas demonstram de maneira mais nítida a possível revolução do que este homem idoso.

Não queria que Antônio Pitanga fizesse uma participação. Quis chamá-lo para a fogueira, para fazer algo que nunca tinha feito antes.

A presença de Antônio Pitanga, numa saga de revolução social, remete ao imaginário do Cinema Novo.

Exatamente. O cinema precisa estar perto do risco, ele não pode ser acomodado. Não pode se contentar com o bom gosto, o bonitinho, o politicamente correto apenas. Existe algo muito complexo por trás, que precisamos mostrar inclusive pela própria estética. Para mim, esta era uma maneira de comunicar com grandes nomes e com o movimento do Cinema Novo, que trouxe filmes muito radicais. Este ator veterano atravessou todas essas vanguardas — desde O Pagador de Promessas e os filmes antes do Cinema Novo —, tendo conhecido o começo, o meio e o fim deste processo.
Hoje ele ainda está aí. Talvez o chamem para participações especiais, mas não queria que Pitanga fizesse uma participação. Quis chamá-lo para a fogueira, para fazer algo que nunca tinha feito antes: primeiro, um protagonista absoluto, que ele nunca fez antes. Segundo, não queria o Pitanga que grita e vibra daquele jeito que estamos acostumados. Queria um Pitanga que pensa em cena. Para mim, não era o corpo que queria ressoar, e sim o pensamento. Queria trazer uma efervescência, uma força, uma tensão no ar. Este era o meu grande desafio: como trazer uma violência, uma veracidade, sem enxergar? Foi um desafio enorme, e fico eternamente grato de ter sido abençoado por ele. Inaugurei minha carreira com a bênção do Pitanga, que veio de peito aberto para fazer algo diferente de tudo o que tinha feito antes.

Os animais são fundamentais nessa fábula. Para você, o que representam bois, panteras e cachorros na narrativa?

Tudo é uma consequência de ancestralidades, de gerações. Faço um mergulho, desde o começo do filme, através da imagem do buraco na mão. Tem algo muito além da pele dele. Isso toca num lado espiritual, que me permite mexer com certas forças da umbanda, a exemplo do Caboclo Boiadeiro — a mistura do homem com o boi. Essa figura aparece quando precisamos revolucionar: algo velho precisa morrer para algo novo nascer. É o momento de reciclagem. Era importantíssimo tocar nesta esfera das sugestões para as pessoas sentirem. Além da razão, cinema é sentimento. Algumas coisas não representam animais especificamente, mas entidades. Elas vão além das figuras, e representam uma força que diz respeito à natureza em si.
Os personagens precisam lidar com estas forças cada vez maiores. Cristovam chama a entidade do Caboclo Boiadeiro, e ele precisa ascender para atingir isso. A música que surge nesse momento é de ordem espiritual, para se dançar, vibrar, incorporar a entidade. Quem segue o caboclo vai ser tocado nesse momento. É uma música-arquivo usada em templos para chamar as entidades. Na questão da pantera, são as mulheres, e seu lado feroz. Trata-se de outra força, porque elas são as personagens que restam, que vão ficar e realmente promover uma mudança, ao invés do Cristovam.

Era importantíssimo tocar nesta esfera das sugestões. Além da razão, cinema é sentimento.

Você menciona o furo na luva, as panteras. Casa de Antiguidades chega muito perto do realismo fantástico.

Eu trabalho muito com sugestões. Prefiro sugerir a partir de imagens mais simples, quase realistas, apesar de um ou outro efeito. Imaginamos mais do que vemos os acontecimentos de fato. Faço um tipo de cinema que não almeja apenas o fantástico, e sim uma transcendência. É uma questão de entrar num transe, entrar em outra dimensão. Para mim, isso acontece através do cinema, mas para alguns, talvez seja na igreja, para rezar e sentir uma presença divina. Eu sinto uma presença divina na hora que observo a realidade em volta e vejo milagres, digamos assim. Eles não são muito explicáveis, mas nos interrogam. Parece que os personagens estão em outra instância, outra dimensão. Eles parecem fora do contexto da realidade, em busca de um transe.

Casa de Antiguidades tem gerado bons debates desde as primeiras exibições. Você acompanha as críticas?

Algumas coisas chegam até mim, e acabo vendo. Eu sei que não fiz um filme fácil. Não fui para o caminho mais fácil, não fiz um filme em cima do muro, meio-termo, para agradar. Para mim, é oito ou oitenta: o cinema precisa ser radical. Adoro me aproximar do ridículo, do erro. Ali existe o momento de flagrar algo verdadeiro, mais profundo. É o que vemos em grandes obras, pelo menos, naquelas que admiro. Penso em Glauber Rocha, que admiro muito, ou mesmo atualmente, com Hong Sang-soo. São filmes super naturais, mas têm bizarrices, epifanias, momentos que fogem do realismo. Para mim, aí está a divindade. Para mim, as grandes obras do cinema são aquelas que tocam em epifanias quando se distanciam do convencional, e abraçam o estranho. Quando você faz filmes assim, algumas pessoas não vão conseguir facilmente digerir. Não é um cinema que vem mastigado, em cima de tendências do momento.
No caso da crítica, acho que fui privilegiado. Primeiro, o filme estava cotado para festivais como Roterdã e Berlim. Mas como comecei minha carreira em Cannes, insisti com a produtora para ver o que Cannes ia querer. Também queria fazer uma nova montagem. Aí aconteceu toda a pandemia, mas veio o convite da Quinzena dos Realizadores em Cannes, que é formada por profissionais diferentes das outras comissões. A Semana da Crítica também se interessou, e me pediu para segurar para o ano seguinte. Aí Cannes disse que aceitaria, mas não sabia como ia acontecer a edição. Havia a esperança de fazer o festival no fim do ano, o que não aconteceu. Eu estou apenas começando a minha carreira, e saber que meu filme passaria por estes espaços já era incrível. Depois, nos Estados Unidos, o filme foi cotado pela Variety como candidato ao Oscar, o que me surpreendeu. Ele recebeu um prêmio Roger Ebert, dos críticos no Festival de Chicago. Também ganhei um prêmio FIPRESCI, com jornalistas de diferentes países, e um prêmio do sindicato de críticos franceses. Então da parte da crítica, tive bastante sucesso. Mas é um filme provocador. Sei que vai ter gente que vai amar ou odiar, sem meio-termo.

Eu sei que não fiz um filme fácil. Não fiz um filme em cima do muro, meio-termo, para agradar.

A seleção em Cannes e Toronto tem ajudado o lançamento no circuito brasileiro?

Sempre é difícil, especialmente hoje em dia. De novo, fiz uma escolha difícil: não queria jogar o filme para o streaming. Conversei com a Pandora [distribuidora] a respeito, porque ninguém sabia o quanto duraria a pandemia. Para mim, não era o momento de lançar, porque ninguém tinha cabeça para isso. Eu mesmo perdi minha mãe durante a pandemia. O filme estava pronto, e pensei que uma hora ele encontraria o seu público. Ele já existia, isso não ia mudar. Preferi esperar, porque a primeira vitrine precisava ser a sala de cinema. Insisto, e vejo que o futuro ainda passa pelas salas de cinema.
Moro atualmente na França, e mesmo que o número de espectadores tenha diminuído, a sala de cinema ainda é o espaço ideal para um lançamento de filme. Não sou contra os streamings, mas vejo que eles vêm depois. É preciso ter primeiro a janela dos cinemas. Depois ele pode ir para plataformas, para a TV a cabo. Concordo com tudo isso; quero que ele seja disponibilizado ao máximo. Mas insisto que as pessoas tenham primeiro a oportunidade de ver em salas de cinema. É preciso ter uma concentração, uma experiência coletiva: você vai enxergar outras coisas a partir desta experiência. Viso a qualidade, em primeiro lugar, ao invés apenas da quantidade. Isso vai ressoar, no futuro, na qualidade na obra.

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