Festival de Vitória 2023: Uma mulher transexual aplaudida de pé

A noite do dia 20 de setembro foi emocionante, e simbolicamente potente, na 30ª edição do Festival de Vitória. Os espectadores do Sesc Glória assistiram à produção capixaba Toda Noite Estarei Lá, de Tati Franklin e Suellen Vasconcelos. O documentário acompanha a jornada de Mel Rosário, cabeleireira transexual que luta na justiça pelo direito de frequentar o culto evangélico de sua preferência. Diante da proibição dos pastores preconceituosos, ela carrega placas de amor e aceitação até a porta da Assembleia de Deus.

O acolhimento foi caloroso, não apenas por se tratar de uma produção local, mas também pela carga de emoção apresentada pela protagonista no palco. É visível a importância deste projeto à militante, que combina a luta em nome dos valores da esquerda com as palavras de adoração a Deus, extraídas da Bíblia. Os aplausos de pé no final da sessão representaram um momento raríssimo em festivais brasileiros, e se tornam ainda mais relevantes quando as pessoas aplaudidas são um casal de cineastas lésbicas, que trocaram um beijo afetuoso no palco, e uma mulher rejeitada pelo sistema. No interior do Teatro Glória, pelo menos, reinou a empatia e a aceitação das diferenças.

Toda Noite Estarei Lá

A luta pela visibilidade de pessoas marginalizadas também se estendeu aos curtas-metragens da noite, que abordavam a deficiência visual; a autonomia de pessoas idosas contra um capitalismo explorador; a opressão de um trabalhador de baixa estatura e a gravidez de uma garota no interior de Minas Gerais. Cama Vazia, de Jean-Claude Bernardet e Fábio Rogério, explora de maneira frontal a reflexão do protagonista a respeito da eutanásia e do suicídio assistido, após várias experiências extenuantes de internação hospitalar. Trata-se de uma visão implacável, desprovida de (auto)piedade, ao envelhecimento e à morte.

Uma gravidade semelhante se encontra em Big Bang, de Carlos Segundo, outro filme que traz a morte às telas, ainda que de maneira lúdica, graças às ferramentas da fantasia. Na trama, Chico é um trabalhador de baixa estatura que sobrevive a um acidente de carro. Cansado da maneira como é tratado, inclusive pelos familiares, une-se a uma assistente de cozinha nos planos de uma vingança contra a burguesia desumana. Trata-se da segunda parte da trilogia cósmica do cineasta, após o igualmente belo Sideral.

Big Bang

Em chave mais terna, Lugar de Ladson, De Onde Nasce o Sol e A Última Vez que Ouvi Deus Chorar retratam as bordas da sociedade pela desconexão da realidade imediata. Lugar de Ladson, de Rogério Borges, representa a experiência de mundo de um adolescente com baixa visão. Assim, desfoca imagens, aplica flares e feixes luminosos que sugerem a percepção do protagonista. Para atenuar a trama, foca-se na paixão do garoto por uma menina que lhe promete um encontro.

De Onde Nasce o Sol, de Gabriele Stein, imagina a epopeia silenciosa de três crianças, que aparentam viver completamente sozinhas num mundo distópico. Elas brincam, correm, lavam as roupas e enfrentam a tempestade numa canoa, em solitário. O roteiro se ressente da ausência de diálogos, ainda que a poesia do planetário proporcione alguma forma de escapismo às duas garotas e ao amigo.

A Última Vez que Ouvi Deus Chorar

A Última Vez que Ouvi Deus Chorar representou a única obra experimental do grupo, encerando uma série de cinco filmes realizados por Marco Antonio Pereira no interior de Minas Gerais. Ao contrário dos títulos anteriores, mais acessíveis e narrativos, desta vez ele imagina uma releitura da Virgem Maria através de uma jovem que engravida e perde o bebê, para o desespero de Deus, que abandona a região. Ou ele teria deixado as terras há tempos, em função da situação política brasileira? O filme impressiona em algumas trocas simbólicas, embora soe desconexo quando investe em imagens de crianças indígenas em positivo, além da matança de lobos e raposas. Uma maneira radical, hermética e nada esperançosa de encerrar a pentalogia.

De modo geral, Vitória tem apresentado alto nível da seleção e curadoria, não penas pelos títulos isolados, mas pela capacidade de diálogo entre eles. Como se percebe em outros festivais brasileiros, a safra de curtas-metragens apresenta maior nível de ousadia e refinamento do que aquela dos longas-metragens. Isso reafirma a vocação do formato curto enquanto palco privilegiado de resistência e experimentação em momentos de crise.

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