Venha Aqui (2021)

A imagem se bifurca

título original (ano)
Jai Jumlong (2021)
país
Tailândia
gênero
Drama
duração
69 minutos
direção
Anocha Suwichakornpong
elenco
Apinya Sakuljaroensuk, Bhumibhat Thavornsiri, Sirat Intarachote, Waywiree Ittianunkul, Sornrapat Patharakorn
visto em
Filmicca

Quatro amigos vão ao museu, mas, chegando lá, o local está fechado para reformas. A sinopse oficial de Venha Aqui (2021) ocupa apenas os primeiros minutos do longa-metragem. Não se trata de nenhum conflito relevante na vida dos personagens: diante da construção coberta por tapumes, dizem “paciência” e se enveredam pela floresta ao redor. Há outras coisas a fazer, como passear e chegar à cabana alugada.

O filme logo revela uma estrutura sem conflitos, no sentido estrito do termo. Estão ausentes as vontades contrárias (um personagem deseja algo que não pode ter; ou que fere os sentimentos de um segundo). Some, em igual medida, a noção de finalidade: eles não chegam à cabana para que aconteça algo particular à sua jornada. Partindo de uma premissa bastante propícia ao cinema de horror, por exemplo, a produção tailandesa revela uma incursão no cotidiano banal, contemplativo, onde “nada acontece” — pelo menos, não no sentido de um evento-espetáculo transformador.

A diretora Anocha Suwichakornpong sempre desenvolveu uma forma de cinema contemplativo, que nos força a observar os espaços e personagens, até descobrirmos novos elementos em jogo, novas maneiras de conceber o tempo e os lugares. Isso poderia resultar numa obra entediante, mero olhar esvaziado de um objeto apreendido pela câmera, sem ponto de vista preciso. Pelo contrário, o longa-metragem se envereda por caminhos inesperados e surpreendentes. O espectador jamais sabe o que ocorrerá a seguir, em termos de estética e narrativa, algo que solicita nossa participação ativa para associar e desvendar sentidos.

Por exemplo, a obra aposta em telas divididas em duas partes, porém numa maneira diferente àquela que fomos acostumados. Ao invés do corte vertical, a imagem próxima do quadrado (em janela 1.66 : 1) é cortada horizontalmente, resultando em dois quadros ainda mais retangulares, um acima do outro. Essa aproximação gera atritos notáveis: uma floresta, na parte superior da tela, aparenta ter raízes fincadas no concreto da construção, posicionada abaixo. A garota que dorme, no canto inferior, é iluminada pelos refletores urbanos da tela acima. Nascem significados e sugestões apenas via montagem, inexistentes dentro de cada um dos trechos isolados.

A cineasta começa a explorar, de maneira tão calma quanto obsessiva, a noção dos duplos. Praticamente todas as sequências serão visitadas duas vezes, em chaves distintas.

A cineasta começa a explorar, de maneira tão calma quanto obsessiva, a noção dos duplos. Trabalhando com planos fixos e distanciados dos personagens, resolve apresentar o rosto dos quatro amigos num close-up longo e profundo, quando encaram a câmera (e o espectador) por alguns minutos, sem se mover. Este contato íntimo completa as sequências distanciadas quando conversam em meio à natureza, em planos gerais que mal permitem enxergar suas feições. Passamos do close-up extremo à ausência de expressões, desprezando os planos de conjunto tradicionais que serviriam de elo entre um e outro.

As cenas também se duplicam. Praticamente todas as sequências serão visitadas duas vezes, em chaves distintas. Primeiro, uma garota vai à biblioteca para ler, e depois, o colega visita o mesmo espaço para dormir no sofá. Inicialmente, enxergamos a explosão de fogos e artifício no reflexo da janela atrás dos protagonistas (o plano e o contraplano são embutidos numa única imagem), porém, em seguida, enxergamos as luzes de modo frontal. Em particular, a cabana onde dormem à noite é recriada em estúdio, peça por peça, enquanto a preparação é filmada por Suwichakornpong, tal qual um making of. As conversas íntimas sobre os rumos profissionais dos colegas são reencenadas no estúdio, incluindo leves variações de texto.

Tais escolhas produzem um efeito hipnótico. Venha Aqui produz uma fricção constante entre a realidade de aparência documental, com mínima intervenção, e a artificialidade máxima, onde tudo é encenado de maneira ostensivamente fictícia. A simples caminhada inicial pela floresta se converte, adiante, numa cena de fantasia envolvendo a morte e transmutação de uma garota. A singela conversa entre amigos se transforma em jogo de cena, em prazer de manipular o dispositivo, os tempos e espaços. O controle e a falta de controle disputam nossa atenção a todo instante.

Esta dança da linguagem cinematográfica ocorre através de um preto e branco deslumbrante. Ao contrário de tantas direções de fotografia que apenas retiram a cor após as filmagens, deixando uma aparência acinzentada atenuada em pós-produção, aqui se torna visível o pensamento prévio da luz e da cor para o efeito do preto e branco. O trabalho de contrastes, de baixas luzes e de reflexos é primoroso, sem jamais transformar a iniciativa da cineasta num exercício de vaidades. Quando estes estudantes de artes dramáticas imitam animais ou encaram a câmera, permitem ver apenas a expressividade básica de seus gestos, deixando nuances e ambiguidades à adivinhação do espectador (pois parte do corpo ou do rosto fica escurecida pelas sombras). Paira uma aura de mistério nos quatro jovens comuns, cujos objetivos desconhecemos.

O mesmo pode ser dito da montagem. A maioria dos cineastas expandiria levemente a duração para chegar ao tempo comum de um longa-metragem em festivais. Ora, a tailandesa mantém os 69 minutos atípicos porque nenhuma cena se estende pelo simples prazer de estender, nem se repete para ocupar espaço. A contemplação das paisagens e das interações se reúne com uma economia narrativa e um ritmo bastante pragmáticos em termos de agenciamento: sabemos que cada cena encontrará seu duplo adiante, e apenas ele. Quando o primeiro personagem é visto num close-up sério, compreendemos que os demais receberão o mesmo tratamento. 

Em consequência, não existe nenhum componente aleatório, ou desconexo pelo simples prazer de sê-lo. O conceito está trabalhado e desenvolvido do início ao fim, com poucos desvios. Um belo exemplar desta iniciativa vem da magnífica imagem da linha do trem. A princípio, o trem passando em preto e branco por trilhos sugere a máxima banalidade, algo tão documental quanto herdeiro do cinema mudo (A Chegada do Trem à Estação; os filmes de Buster Keaton e Charlie Chaplin). Em seguida, no entanto, a câmera se distancia num raro travelling para trás. Ao invés de se aproximar daquilo que deseja filmar, ela se afasta. 

Neste instante, percebemos muitas outras linhas e ações ocorrendo ao lado do trem. Carros passam numa profundidade distinta, pessoas correm apressadas numa terceira diagonal, novos trens se aproximam. O simples foco preciso se abre ao caos, à atenção múltipla, a uma cena mais próxima da ficção científica de Metrópolis — para permanecermos no cinema mudo. Com um leve deslocamento da imagem, o quadro se transforma e os sentidos se modificam diante dos nossos olhos. O realismo se faz magia; a tranquilidade documental cede espaço ao caos fictício. Venha Aqui proporciona um banquete de estímulos e linguagens através do olhar de uma diretora que, por trás da aparência de tomadas plácidas, nunca para de interrogar e subverter suas próprias imagens.

Venha Aqui (2021)
9
Nota 9/10

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