Sekhdese (2024)

A forma contra o conteúdo

título original (ano)
Sekhdese (2024)
país
Brasil
linguagem
Documentário
duração
78 minutos
direção
Graciela Guarani, Alice Gouveia
visto em
31º Festival de Vitória (2024)

“O corpo feminino nasceu coletivo. Nisso, percebo a minha subjetividade”. O documentário das diretoras Graciela Guarani e Alice Gouveia investe, desde os primeiros segundos, em reflexões acerca da organização social e dos papéis de gênero em comunidades indígenas. Enquanto isso, o espectador assiste apenas à longa imagem de uma fogueira — que retornará adiante. “O coletivo é utilitário”, sustentam as vozes em off, várias vezes. A tendência à repetição se reproduz na narrativa.

O projeto possui uma estrutura interna muito particular. Para denunciar o avanço de igrejas evangélicas em territórios reservados aos povos originários, lança ideias impactantes, porém simples e reincidentes. A afirmação de que “para o indígena, a terra é tudo” ressurge duas vezes, com variações mínimas. Chegando ao final, os entrevistados (em voz off) resgatam as ideias do terço inicial. Voluntariamente ou não, a montagem constrói uma narrativa em círculos, quase um mantra.

Sekhdese (ou “sabedoria”, na língua Fulni-ô) depende da fala de terceiros para representar eventos que as cineastas não estão dispostas a filmar. Fala-se da aproximação de pastores, discute-se a “sedução” dos indígenas com cestas básicas e outros produtos. Ninguém duvida que estes fenômenos ocorram de fato, em larga escala, porém teria sido importante acompanhar, no dia a dia, tamanha pressão da civilização branca pela assimilação cultural dos povos originários. 

Precisamos interromper a crença falaciosa de que temas importantes dispensam cuidados estéticos — como se, quanto maior fosse a nobreza temática, menor a necessidade de pensar a linguagem.

Num vídeo divulgados pelas redes sociais, dois pastores (com seus rostos desfocados) comemoram a conversão de indígenas ao monoteísmo cristão. Mas essa seria a melhor maneira de apontar culpados? Escolhendo somente poucos segundos de um vídeo representando pastores anônimos? Adiante, a ex-ministra Damares Alves prega a dominação evangélica na política e em todo o Brasil. O caso se aplica aos indígenas, ainda que não os vise especificamente. De resto, precisamos confiar nas denúncias verbais, posto que a obra não nos fornece dados, provas, documentos, ou demais indícios da situação alegada.

Para além das questões narrativas, o projeto desperta atenção devido às deficiências estéticas e de linguagem. A captação ocorre em textura digital de baixa qualidade, caso em que os pixels dançam na tela e dificultam tanto a percepção dos rostos (em close-ups fechadíssimos) quanto dos espaços. As cores são saturadas em excesso, e a fotografia sofre com graves desníveis de luz. Muitas vezes, os entrevistados estão mergulhados na escuridão, antes de, num corte da montagem, reaparecerem superexpostos pela luz do sol num ângulo distinto. A mixagem interrompe ruídos abruptamente, e o barulho do vento se sobrepõe às vozes na captação sonora. A produção não parece bem pensada em termos de composição de imagem ou nas maneiras de lidar com imprevistos.

Por isso, soam modestas as investidas numa forma de poesia que nem a fotografia, nem a montagem conseguem potencializar. Os flashes de notícias de jornais, pontuados pelo som de tiros, seriam mais apropriados a um noticiário sensacionalista; a sequência de música grandiloquente com o brilho do sol nas árvores e nas folhas remete a uma beleza kitsch, genérica. As criadoras passam anos em comunidades distintas de Pernambuco, algo sinalizado pelos letreiros, porém as imagens soam idênticas de um lugar para o outro, de um ano ao tempo seguinte. As particularidades de cada povo estão ausentes, assim como a evolução de seus problemas e estratégias de luta.

Na segunda metade da trama, as diretoras se colocam em cena, caso em que Sekhdese ameaça enveredar pela vertente metalinguística. Talvez investigasse então a relação das autoras com seus personagens, ou revelasse as circunstâncias de filmagem. Ora, a estratégia se interrompe a seguir. Uma sequência articula quatro ou cinco planos aéreos com drones, antes de a viagem pelos ares ser abortada, sem surtir nenhuma consequência no restante da narrativa. Então, novos pedaços de madeira queimam, como na abertura.

Ninguém questiona a validade do tema e a importância de discutir os perigos que afetam os povos originários atualmente. É fundamental escutar as mulheres destas comunidades, entender sua relação plural com a religiosidade, e com a cultura branca que insiste em tomar suas terras e eliminar seus costumes. Ainda se valoriza o fato de Graciela Guarani ser uma cineasta que denuncia tais mazelas com evidente conhecimento de causa e lugar de fala. Conceitualmente, a iniciativa se sustenta muito bem.

Em contrapartida, não é mais possível equivaler um cinema indígena a uma produção apressada, com tantos problemas de luz, som e montagem. O cinema brasileiro tem construído pérolas, dentro de comunidades afastadas e enfrentando inúmeras dificuldades de produção. Este é o caso de Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos, A Flor do Buriti, Ex-Pajé, A Última Floresta, Mãri Hi — A Árvore do Sonho e Thuë Pihi Kuuwi: Uma Mulher Pensando, para citar apenas alguns. 

O discurso de urgência e relevância política não pode se restringir às denúncias explícitas somadas a imagens “de suporte”, cujo valor se encontraria no simples fato de ampliarem as falas destas pessoas a um público maior. Com suas carências e repetições, Sekhdese desperta a impressão de não possuir material suficiente para um longa-metragem, caso em que alguns trechos são inseridos para atingir a duração mínima deste formato. 

Precisamos interromper a crença falaciosa de que temas importantes dispensam cuidados estéticos — como se, quanto maior fosse a nobreza temática, menor a necessidade de pensar a linguagem. O cinema possui tanta responsabilidade com os povos retratados quanto com as imagens e sons destinados a representá-los. 

Sekhdese (2024)
3
Nota 3/10

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