Estômago 2: O Grande Chef (2024)

Imaginários coletivos

título original (ano)
Estômago 2: O Grande Chef (2024)
país
Brasil, Itália
gênero
Comédia, Ação
duração
131 minutos
direção
Marcos Jorge
elenco
João Miguel, Nicola Siri, Paulo Miklos, Guenia Lemos, Marco Zenni, Violante Placido, Giulio Beranek, Marisa Laurito, Giorgio Gobbi
visto em
Cinemas

Imagine uma prisão brasileira. Esqueça os dados de pesquisadores e os aspectos socioculturais específicos — concentre-se na primeira imagem que vier à sua mente. Talvez pense em lutas de gangues violentas; prisioneiros acertando suas desavenças a facadas; líderes explorando os novatos; comida nojenta servida entre ratos e insetos; rebeliões com incêndios e gritos; diretoria corrupta e conivente; o BOPE entrando para promover o terror.

Agora, imagine a máfia italiana. Novamente, dispense a evolução histórica destas famílias ou sua incorporação à política institucional. Volte-se àquilo que lhe pareça óbvio: homens de charuto, atrás de suas mesas imponentes, comandando o tráfico enquanto prometem almoçar com as queridas mamães no domingo. Comerão macarronada, claro, porque todos os italianos se alimentam de massa, dia sim, e outro também. Falam alto e defendem a família, embora esfaqueiem o antigo comparsa quando necessário. 

Estômago 2: O Grande Chef busca combinar estas duas esferas, raramente unidas nas narrativas sobre criminalidade, por corresponderem a códigos de conduta muito diferentes, além de pertencerem a classes sociais antagônicas. Ao invés de um projeto sobre a prisão e sobre a máfia, talvez fosse mais correto afirmar que o diretor Marcos Jorge faz um filme sobre os códigos populares normalmente associados a estas esferas. Os criadores não se preocupam com o naturalismo e a verossimilhança, preferindo a caricatura de ambas.

Nonato é destituído de conflitos. Ele nunca demonstra consciência de seu potencial enquanto cozinheiro (podendo agradar, provocar, envenenar, transmitir mensagens). Alecrim apenas sorri. O homem cordial, nesta trama, revela-se domesticado e passivo.

A ode ao estereótipo contamina todos os personagens desta farta galeria. O nordestino Raimundo Nonato (João Miguel) limita-se à figura atrapalhada, meio ignorante e sorridente. Presida (Projota), um tipo intelectual, veste uma camisa engomada e usa óculos de grau, além de utilizar frases como “Não seria a mais abstrata e visceral das formas de posse?”. Já os colegas, menos instruídos, reproduzem os palavrões esperados. As mamas italianas são obesas e falam sem parar. A mafiosa fatal é descrita como impossível de conquistar, até o protagonista levá-la para a cama com seu charme irresistível e seu talento na cozinha. O caminho para o coração passa pelo estômago; a comida é a linguagem do amor, etc. — escolha o chavão gastronômico de sua preferência.

Compreende-se com facilidade como esta galeria de simplificações possa soar desgastada, mesmo ofensiva — sobretudo aos personagens de classes populares. Os eventuais comentários autoconscientes acerca do machismo se perdem num roteiro que evita esmiuçar as relações entre homens e mulheres, ou entre “poder e foder”, como sugere um personagem. A moça que aceita transar enquanto come (macarrão, é claro), e a outra que se entrega ao chef sobre a mesa da cozinha terão seus desejos dispensados a seguir (a primeira some da narrativa) porque o filme nunca se interessa, de fato, por nenhuma mulher para além da função esporádica de “par romântico” — mais um conceito oriundo do imaginário televisivo.

Os principais problemas do longa-metragem derivam do conceito e da estrutura do roteiro. A montagem nunca costura a contento o segmento italiano com aquele brasileiro, deixando que o primeiro fagocite o segundo. Faltam justificativas plausíveis para a prisão de importantes líderes estrangeiros num presídio de baixa segurança no Brasil; além de contextualização para o restaurante brasileiro que deveria servir de elo entre os dois mundos. Multiplicam-se as conveniências e obviedades: rumo ao clímax, a família inimiga escolhe, por acaso, um almoço de comemoração em tal estabelecimento. Na única vez em que o rádio é ligado, a emissora transmite informações valiosas a respeito dos planos de traficantes, de modo a informar o espectador. Prático, não?

Nonato, em especial, se vê destituído de objetivos e conflitos. Enquanto sujeito capaz de transitar pelas duas esferas, concentraria um poder considerável em mãos. Para a nossa decepção, ele se contenta em colocar panos quentes nas brigas entre Etcétera (Paulo Miklos) e Caroglio (Nicola Siri), além de fornecer informações à diretoria e comparecer quando solicitado. O personagem possui tempo considerável de tela, embora sirva basicamente para levar a câmera de um lado para o outro do presídio. Raimundo jamais demonstra planos para fuga, expectativas de crescer na hierarquia, nem mesmo consciência de seu potencial enquanto cozinheiro (podendo agradar, provocar, envenenar, transmitir mensagens). Ele apenas sorri. O homem cordial, nesta trama, revela-se domesticado e passivo.

Outros elementos destoam da construção, sugerindo um filme de roteiro inconstante, talvez modificado em sucessivos tratamentos, ou retalhado em excesso pela montagem. Ora Caroglio multiplica os xingamentos e termos em inglês (“Motherfucker!”), ora não faz nenhum uso destas palavras. Sua formação de ator, revelada na extravagante cena inicial, será abandonada adiante. O tom de paródia, incluindo memes (“E disseram que eu estava na pior”) e referências óbvias (“Uma oferta que ele não pode recusar”) também é dispensado a seguir. Às vezes, Alecrim parece um especialista na cozinha, porém nas sequências seguintes (o preparo do bauru, por exemplo), mostra-se chocado com um lanche simples. No clímax, quando a montagem paralela intercala sequências de mafiosos italianos e prisioneiros brasileiros, resta a impressão de assistirmos a dois filmes diferentes.

Por fim, Estômago 2: O Grande Chef soa como uma iniciativa que sofreu grandes problemas durante a realização. Marcos Jorge é um diretor de talento, sem dúvida, e as equipes de produção, fotografia e arte se esmeram dentro do tom caricatural escolhido. Apesar de escolhas desajeitadas (a explosão não convence no que diz respeito aos efeitos visuais), as imagens ainda impressionam, e denotam tanto esforço quanto investimento considerável dos envolvidos. 

No entanto, a italianização da trama faz com que a franquia deixe de abordar o jeitinho brasileiro, a marginalidade, o peso das circunstâncias conduzindo à criminalidade. A obra de 2007 trazia um discurso a respeito do Brasil, efetuando uma crônica de classes e gêneros de maneira ousada e assumidamente grotesca (vide a conclusão). Tal coragem e tomada de risco desaparecem diante da pacificação do nordestino atrapalhado servindo aos europeus chiques e aos prisioneiros brutos. Estômago comentava fissuras de um país repleto de desigualdades; já a nova comédia apenas debocha destas mesmas desigualdades. A sequência carnivaliza o original. 

Estômago 2: O Grande Chef (2024)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.