Plano 75 (2022)

Necropolítica

título original (ano)
Plan 75 (2022)
país
Japão, França, Filipinas, Qatar
gênero
Drama
Duração
105 minutos
direção
Chie Hayakawa
elenco
Chieko Baishō, Hayato Isomura, Yuumi Kawai, Taka Takao, Stefanie Arianne
visto em
46ª Mostra de São Paulo (2022)

Os últimos anos trouxeram à tona um termo relativamente novo às discussões políticas, ainda que decorrentes de práticas antigas: a necropolítica. Ela se define pela política de deixar morrer, ou estimular a morte, de pessoas pouco úteis ao capital. O Brasil se tornou um exemplo claro deste conceito, com um presidente que atrasou a compra de vacinas durante uma pandemia, pedia a todos para voltarem às ruas durante o auge da doença e sempre desprezou os mais pobres. Os empresários precisam manter sua margem de lucros, portanto, faça o favor de sacrificar sua vida em nome da rentabilidade alheia.

Plano 75 representa esta questão de maneira mais poética e melancólica, apesar de igualmente brutal. Na fábula criada pela cineasta Chie Hayakawa, o Japão implementa a medida sugerida no título, onde os idosos acima de 75 anos podem se voluntariar a uma eutanásia gratuita para não encarecer os cofres públicos com a previdência. Num país com a população “que mais envelhece no mundo”, segundo os letreiros, a proposta se reveste de um ar de prudência e responsabilidade fiscal. “Os japoneses têm a tradição de se sacrificar em nome do bem comum”, relembra um adolescente chantagista, na forte cena de abertura.

O terço inicial da narrativa se dedica a construir o aspecto de normalidade do absurdo, graças à implementação desta política. Os brasileiros podem enxergar nesta distopia um parentesco com nosso recente Medida Provisória (2020), que se apropriava de nossa ferida mais profunda (a escravidão e o racismo decorrente dela) para sugerir as medidas possíveis de um governo tirânico. Em nosso caso, Adriana Esteves representava a “normalidade”, o caráter de favor prestado aos negros pela expatriação dos mesmos à África. No equivalente japonês, Hayato Isomura assume a figura do burocrata gentil, que acredita estar fazendo um favor a todos.

A narrativa se contenta com a apresentação desta medida política: pouco é construído para justificar uma sociedade onde a lei extrema pudesse ser adotada.

Entretanto, a narrativa se contenta com a apresentação desta medida política: pouco é construído para justificar uma sociedade onde a lei extrema pudesse ser adotada. Como se encontrava o Japão no instante da votação? Como isso se transmite nas comunidades, nos bairros, nas conversas nas ruas? Ora, o roteiro prefere se focar em quatro pessoas diretamente afetadas pelo caso: a mulher idosa que, em crise financeira, acata o plano 75, a enfermeira cuidando dos pacientes, o representante do governo e uma assistente social encarregada de fornecer apoio aos aplicantes e convencê-los a permanecer no plano.

Assim, a medida controversa se converte em meio e finalidade da discussão, ao invés de um meio para uma discussão mais ampla. As imagens estão repletas de panfletos e catálogos do plano 75, e o som é tomado pela propaganda em vídeo desta medida na televisão. A cineasta possui dificuldade em se afastar de sua metáfora para enxergá-la com senso crítico e com o devido horror que ela inspira. Fala-se nesta medida o tempo inteiro (Você aceitaria? Não aceitaria?), algo que de certo modo limita seu potencial narrativo — afinal, compreender a sociedade que acata tal chantagem seria muito mais interessante do que se debruçar no passo a passo do plano em si. O foco soa levemente desviado de seu propósito político.

A estrutura coral, com quatro protagonistas, também perde em coerência e consistência. A trama pende em favor da senhora idosa (Chieko Baisho), dedicando menos tempo e importância aos demais, numa exposição pouco equilibrada. Os dilemas da imigrante filipina com sua filha doente, e da atendente em súbita crise moral em relação ao próprio trabalho (algo que surge apenas no último terço) ficam em segundo plano em relação à verdadeira heroína da trama. Caso a jornada assumisse esta senhora como protagonista, investigando as origens de sua solidão, a relação conflituosa com os filhos ausentes e com a falta de trabalho, poderia se aprofundar na discussão, em chave metonímica. A pretensão de abraçar todos os lados da equação (jovens e idosos, da sociedade civil ou do governo, conservadores ou progressistas) transparece a dificuldade em dar igual atenção a todos.

Mesmo assim, os atores estão bem em seus papéis, ainda que todos sejam dirigidos em tons muito semelhantes. Prevalece o comedimento, o silêncio face à opressão estatal, numa forma bastante passiva de acatar a lei supostamente polêmica. Alguns tomates são jogados contra um cartaz do plano 75, por pessoas fora de quadro, sem rosto nem voz, e que jamais retornam. É curiosa a decisão de enxergar estes indivíduos, em igual medida, como vítimas respeitosas e pesarosas dos atos bárbaros. A presença de um destes manifestantes traria um pouco mais de equilíbrio ao tom funesto do percurso.

Ao menos, a cineasta comprova o domínio desta forma de cinema de observação. Ela adota uma atmosfera solene, de cores bege, e aparência de cotidiano banal. Os enquadramentos com profundidade de campo limitada, os rostos de olhares baixos e tristes compõem uma espécie de sonata triste a um país em perda de valores, tanto pela adoção deste plano segregacionista, quanto pela incapacidade de se voltar contra ele. Para o bem ou para o mal, Hayakawa observa o caos com a doçura e a compostura de um violinista do Titanic que segue tocando sua composição conforme o navio afunda.

No terço final, o silêncio ameaça se transformar em horror, expondo os limites éticos destas ideias. Se os dois terços iniciais brincavam com a ideia da morte, a conclusão se dedica a concretizá-la. O filme enfim adquire um caráter pesado, provocador, incluindo uma belíssima cena do olhar cúmplice e apavorado entre dois idosos, esperando para receberem suas doses letais — a distopia finalmente se concretiza. Mas já é tarde: a cena de desfecho retorna à ternura do pôr do sol, do plano estático, da canção entoada em off. O filme prefere ser doce e sonhador a apontar dedos e ir ao fundo de sua magnífica e terrível premissa.

Plano 75 (2022)
6
Nota 6/10

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