Mudos Testemunhos (2023)

O cinema contra a morte

título original (ano)
Mudos Testigos (2023)
país
Colômbia, França
linguagem
Drama, Documentário, Experimental
duração
78 minutos
direção
Jerónimo Atehortúa, Luis Ospina
elenco
Roberto Estrada, Mara Meba, Rafael Burgos
visto em
12º OIhar de Cinema (2023)

Mudos Testemunhos parte de uma dupla recuperação de imagens de arquivo. Tempos atrás, o grande diretor colombiano Luis Ospina decidiu criar um novo longa-metragem utilizando trechos resgatados do cinema mudo nacional. No entanto, faleceu antes de completar o projeto, o que deixou a finalização da obra em suspenso. Entra em cena o jovem diretor Jerónimo Atehortúa, que aceita concluir o filme num regime de coautoria com o cineasta falecido. Resgata-se a obra de resgate, ou ainda, oferece-se uma segunda vida a materiais dos primórdios do cinema, que pareciam esquecidos na contemporaneidade.

O resultado se assume enquanto colcha de retalhos. Ospina já pretendia unir inúmeros fragmentos de clássicos colombianos numa narrativa vanguardista. O fato de esta colcha ser costurada à colcha de outro artesão torna a fragmentação ainda mais evidente, jogando tanta luz às costuras quanto ao resultado final da manufatura. Esta é uma obra a respeito das imagens, ou ainda, o cinema refletindo o próprio cinema. 

Trata-se de uma iniciativa de memória e preservação, sem dúvida, porém distante de uma submissão servil às películas de origem. Ou seja, nota-se a pesquisa, a recuperação das imagens e então a construção autônoma de um novo e fascinante monstro de Frankenstein cinematográfico. O resultado vale tanto pelo que redescobre, em seu sentido de partida, do que pelo pode recriar, ressignificar, ao unir trechos, personagens e captações díspares. A dupla combinou história de amor, reportagens documentais, filmagens de vanguarda e documentos etnográficos numa aventura vertiginosa.

Trata-se de uma iniciativa de memória e preservação, sem dúvida, porém distante de uma submissão servil às películas de origem.

Em apresentação ao público, Atehortúa explicou com surpreendente lucidez os valores e os desafios desta iniciativa. Elogiou a “qualidade fantasmagórica” da obra e felicitou os raros espectadores dispostos a assistir a pedaços do cinema mudo colombiano. Declarou que sua tarefa seria de “restituir o poder catártico dessas imagens”, e que, ao finalizar a obra inacabada de Ospina, contribuiria a “usar o cinema enquanto luta contra a morte”. Em outras palavras, para além de constituir o documento de uma época, o projeto oferece a possibilidade de driblar simbolicamente a nossa efemeridade, posto que estes personagens e filmes mudos passam a existir (a princípio) para sempre, no novo filme e na memória daqueles que o veem.

No entanto, a experiência de Mudos Testemunhos pode soar muito simples inicialmente. Parte considerável do roteiro se encontra num quiproquó amoroso clássico — um melodrama em três atos. Efraín se apaixona pela bela Alicia, que encontra por acaso na rua. No entanto, a moça está comprometida com o poderoso empresário Uribe. As dinâmicas tradicionais do triângulo amoroso, do rico contra o pobre, do amor impossível e das dores da paixão (os dois literalmente adoecem pela distância) estão presentes de maneira exagerada. O teor do jogo cênico deve despertar risos pelo abismo existente entre esta visão de mundo e a maneira como se filma, ama e conta histórias atualmente.

Logo, o romance adquire contornos sombrios, inesperados. Há tiros, perseguições, uma casa em chamas, e um incêndio que atinge a cidade inteira, deixando centenas mortos, e tantos outros, famintos. A leveza caricatural do início cede espaço a algo grave, consequente e iminentemente político. É claro que tais fragmentos nunca conviveram em seu tempo: a preciosidade da obra se encontra na aproximação entre concepções opostas de cinema. Para quem acredita que o cinema mudo seria uma massa homogênea de produções, esta releitura demonstra sua incrível diversidade. Utilizando-se de alguns artifícios cômicos (embora queimado, o amante está vivo, e decide partir em busca de Alicia), os autores permitem continuar uma jornada improvável, misturando romance, drama, comédia, ação e manifesto político. 

Subitamente, o pobre Efraín empreende um périplo pela América Latina, onde sobe e desce rios, encontra pessoas indígenas, descobre imagens coloridas. Ele conhece a pobreza em outras regiões, e entrega-se à morte, contrariando as expectativas de recompensa emocional ao espectador. No avesso da tradição romântica, o rapaz (ausente no terceiro ato, posto que não havia mais imagens disponíveis de seu rosto e seu corpo) se converte num revolucionário progressista, um homem contestador, para quem a luta pela igualdade se encontra acima das paixões burguesas. Pena para Alicia, presa aos braços possessivos de Uribe em algum local extraquadro.

Assim, a iniciativa que poderia soar como traquinagem, mero exercício de colagem de arquivos, adquire um teor reflexivo. Desconstrói-se a história de origem, mas também a idealização amorosa do cinema popular em prol de uma leitura questionadora da imagem do outro e do heroísmo no cinema. Inúmeras formas de política se cruzam aqui: a política de preservação, da luta de esquerda, dos afetos, da resistência pela arte. A imagem, viajando por conta própria entre diferentes registros, cores e tons, torna-se tão protagonista quanto Efraín. Talvez este sujeito incorpóreo, ressuscitado das cinzas (aí está a “qualidade fantasmagórica”), simbolize o cinema que renasce da deterioração e do esquecimento.

Além disso, Mudos Testemunhos representa a possibilidade de união entre diferentes gerações, diferentes épocas do cinema, diferentes gêneros e visões de mundo. Este conceito abraça o outro, devora-o, fagocita-o numa antropofagia voraz das imagens e dos sons. Soa tão conservador, na reprodução do triângulo amoroso, quanto vanguardista, na hora em que o incêndio reúne colagens e flashes dignos de um grande filme de terror. Dois diretores, dezenove curtas-metragens colombianos servindo de base (o longa-metragem não produz nenhuma imagem própria, cabe ressaltar), além de dezenas de textos literários e manifestos políticos de referência compõem uma obra sui generis, iconoclasta, revolucionária à sua maneira. 

O longa-metragem utiliza o cinema para falar do mundo, mas também para refletir sobre o próprio cinema. Em outras palavras, demonstra a capacidade de se abrir ao outro enquanto pensa a respeito de si próprio, propondo imagens enquanto questiona as imagens obtidas, numa aproximação e um distanciamento simultâneos, contraditórios e deslumbrantes. Uma arte dos paradoxos, no sentido mais profundo do termo.

Mudos Testemunhos (2023)
10
Nota 10/10

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