Mademoiselle Kenopsia (2023)

O castelo vazio

título original (ano)
Mademoiselle Kenopsia (2023)
país
Canadá
linguagem
Drama, Experimental
duração
80 minutos
direção
Denis Côté
elenco
Larissa Corriveau, Evelyne de la Chenelière, Olivier Aubin, Hinde Rabbaj
visto em
Festival de Locarno 2023

Mademoiselle Kenopsia é um filme misterioso. Nas palavras de sua protagonista, “eu me sinto como se estivesse num suspense muito lento”. Ela possui plena consciência de sua situação atípica, permanecendo sozinha num espaço fechado e gigantesco, situado numa locação indefinida. A jovem percorre os cômodos, lentamente. Observa a quantidade interminável de quartos vazios, salas com cadeiras abandonadas, cômodos com paredes descascadas, saguões com bancos esquecidos. 

Julgando pelas roupas formais, ela aparenta trabalhar ali. Mas o que faz, realmente? Seria uma vigia? O que estaria vigiando, e contra quem? A mulher nunca sai deste espaço e, na reta final, descobrimos que nem poderia fazê-lo, mesmo que o quisesse. “Você sabe que não podemos te deixar partir”, afirma uma voz doce, porém firme. “Eu sempre estive aqui”, responde calmamente a heroína. Qual a relação mantida com esta espécie de castelo imaginário, disforme, composto por centenas de cômodos inabitados? Ela dorme ali? Possui vida no mundo exterior?

É raríssimo acompanhar as andanças de uma única personagem, num único local, durante a integridade de um longa-metragem, sem conhecer exatamente nem uma, nem outro. O projeto soa como um novo desafio autoimposto por Denis Côté, fascinante diretor canadense que transforma as limitações em desafios a superar. Como poderia sustentar um filme inteiro sem conflitos definidos, sem apresentar a personagem, nem lhe proporcionar objetivos ou motivações concretos? Como reter o interesse do espectador e desenvolver uma narrativa, ignorando a premissa de uma finalidade?

Côté segue produzindo obras experimentais demais para o cinema clássico, e narrativas demais para o cinema experimental. O cinema pode se beneficiar muito de autores tão ousados, que continuem explorando as fronteiras de gêneros e linguagens.

Nem mesmo o nome destas figuras está definido. Senhorita Kenopsia pode ser esta vigia fantasma, no entanto, ninguém jamais a chama desta maneira, e os letreiros finais tampouco nomeiam as raríssimas aparições humanas em cena. Mesmo os cômodos costurados pela montagem parecem provir de locais diferentes — hospitais abandonados, casas vazias, fábricas desativadas —, como se o cineasta e a equipe de direção de arte buscassem construir um espaço mágico, fantástico, infinito. Este cenário representa todos os lugares e, ao mesmo tempo, lugar nenhum.

Ocasionalmente, a heroína pega o telefone e lança conjecturas filosóficas, reflexivas, um tanto retóricas. É improvável que exista alguma pessoa do outro lado da linha. Discorre então acerca da sensação de não-pertencimento, de se encontrar no futuro. Estima-se que “morrer é uma coisa, mas desaparecer é muito mais interessante”, e que “nascer é algo super violento”. Uma mulher que invade o local (Por onde entrou? O que deseja?) oferece um longo monólogo acerca da dificuldade de agir socialmente, e a dificuldade de encontrar as expressões adequadas a cada interação (“Às vezes, eu erro de rosto. É cansativo”). Evelyne de la Chenelière devora este texto com uma fúria assustadora.

O longa-metragem guarda semelhanças com o teatro do absurdo, por adotar o estranhamento enquanto finalidade em si próprio. Seria possível pensar, igualmente, nos textos de Kafka e nos contos de Cortázar, sobretudo aqueles de Bestiário (curiosamente, o título de outro belo filme de Denis Côté). O autor jamais visa esclarecer as dúvidas, mas mergulhar o espectador num labirinto de referências que se reconfiguram, transformam, bifurcam. Várias conjecturas são possíveis a partir da experiência da jovem neste local, porém os criadores insistem que nenhuma delas seja defendida como correta ou prioritária. Os sentidos se abrem.

Felizmente, a premissa se desenvolve, evitando a repetição ou o desgaste da experiência. Logo, começam a aparecer projeções em 16mm sobre os móveis, acompanhadas de ruídos. São abstratas a princípio, porém adquirem formas animais adiante. De onde vêm estas inserções? A heroína os enxerga, ou são oferecidas somente ao espectador? De certa forma, estamos presos no espaço infinito junto da jovem mulher. Vigiamos, nós também, este espaço silencioso e sua única ocupante. Três personagens irrompem o ambiente que parecia isolado e, de repente, revela algumas portas abertas. Descobrimos então as imagens dos arredores, devidamente ocultadas até então (antes do terço final, a câmera nunca observa através das janelas).

Mais do que isso, o clímax constitui uma mistura de flashback e delírio, no qual a personagem se vê inserida numa gigantesca festa barulhenta, durante o dia. Trata-se do único instante fora do palácio-protagonista. Ela se encontra solitária na multidão, sem interagir com as centenas de jovens à beira da piscina. Possui um olhar absorto, incomodado. Seria por isso que buscou a solidão do castelo? A festa ocorreu de fato? O cineasta oferece peças esparsas de um quebra-cabeça que nunca deseja completar. 

Quando um rapaz chega para consertar as câmeras de segurança, ela demonstra claro interesse amoroso nele — um movimento próximo do desespero, e avesso às sutilezas. Estaria então procurando algum contato humano, apesar de clamar, ao telefone, o contentamento com sua solidão? Por que esta locação imensa não possui um banheiro sequer? “Eu dou meu jeito”, responde a mulher quando lhe questionam sobre a necessidade de se aliviar. Estes são indícios a utilizar, a gosto, na tentativa de compreendê-la. Ela nunca se tornará uma figura clássica-narrativa, porém evita o hermetismo completo — há alguns direcionamentos para a compreensão de seus atos.

Larissa Corriveau tem se tornado a atriz de predileção do cineasta canadense, estrelando suas quatro últimas produções. A atriz consegue ser profundamente expressiva quando solicitada, ainda que Côté goste de retirar dela um aspecto indefinido, espécie de turbilhão contido. Ela tem oferecido personagens silenciosas, um tanto opacas em suas ambições, porém transbordando de afeto, desejo e emoções no rosto. O trabalho se aproxima da performance, destituída de vaidade, liberta do medo de soar ridícula, incompreensível. Esta entrega exemplar, com o corpo flexível e a fala num tom intermediário entre drama e comédia, corresponde perfeitamente à exploração de fronteiras de gêneros e narrativas que tanto agrada o autor.

Em determinado instante, o projeto ameaça se perder devido à abertura exagerada do escopo e ao abandono da premissa da clausura. Conforme traz novos personagens ao espaço, revela uma jovem sedenta por carinho e depois a transporta à festa a céu aberto, tende a diminuir a importância deste castelo vazio. No entanto, a conclusão fortíssima — por introduzir novas peças, totalmente incompatíveis com o projeto de quebra-cabeça até então — retorna de maneira violenta ao palco principal desta experimentação. 

Côté segue produzindo obras experimentais demais para o cinema clássico, e narrativas demais para o cinema experimental. O cinema pode se beneficiar muito de autores tão ousados, que continuem explorando as fronteiras de gêneros e linguagens. Ao invés de constituir uma obra-prima em si, Mademoiselle Kenopsia soa como uma nova peça do quebra-cabeça que constitui a própria filmografia do canadense, e cuja figura final ainda não se revelou ao espectador. Ainda bem.

Mademoiselle Kenopsia (2023)
8
Nota 8/10

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