“Amigo Secreto mostra como foi viver nos governos Lula e Bolsonaro”, explica Maria Augusta Ramos

Maria Augusta Ramos sempre teve um método muito particular para abordar o documentário, especialmente de viés político. Ela deixa de ladoa defesa panfletária de uma ou outra pessoa, e dispensa recursos didáticos como letreiros, narrações e entrevistas diretamente para as câmeras. Em contrapartida, oferece uma observação atenta, ao longo de anos, dos bastidores do poder, acreditando que as imagens captadas falem por si mesmas.

Este é o caso de Amigo Secreto (2022), filme que acompanha as causas e consequências da Operação Lava Jato no Brasil. Seu foco se encontra no trabalho investigativo dos jornalistas do Intercept Brasil e El País Brasil, que vazaram as conversas entre o ex-juiz Sérgio Moro e os procuradores envolvidos no caso, como Deltan Dallagnol. O projeto analisa o efeito da manipulação legal e midiática nas eleições, na chegada de Jair Bolsonaro ao poder, e no cenário político de 2022.

O Meio Amargo conversou com Maria Augusta Ramos a respeito do filme, que já está em cartaz nos cinemas:

Qual é a importância de rever, em 2022, a reunião ministerial em que se diz para “passar a boiada”, ou o depoimento de Lula sobre o tríplex do Guarujá?

É fundamental. Um país sem memória é como uma família sem álbum de fotografias. A tentativa de apagamento da memória, que acontece sobretudo pela extrema-direita, é extremamente fascista. Isso nos leva à destruição enquanto sociedade, enquanto país. A memória é essencial para a gente se entender enquanto ser humano, e para não repetir os mesmos erros — mesmo que a gente sempre repita alguns. O cinema, não apenas o documentário, tem essa função. Isso vale para a arte em geral — no meu ponto de vista, pelo menos. A arte nos ajuda a refletir sobre quem somos enquanto seres humanos, e nossa relação com o meio em que vivemos: a sociedade, a cultura, a família.

Como decidiu até onde iria a sua narrativa? Afinal, ainda sofremos as consequências diretas da Lava Jato.

Bom, qualquer filme precisa ter começo, meio e fim. A proposta desse filme era rever os últimos anos, focando na operação Lava Jato, e em tudo que veio à tona através das mensagens vazadas entre os procuradores e o ex-juiz Sérgio Moro. Grande parte dessas violações, ilegalidades, e arbitrariedades já eram denunciadas por advogados e juristas, além de questionadas por ministros do STF. Mas infelizmente, o sistema de justiça não conseguiu fazer o que deveria ter feito nas instâncias superiores. Isso foi devido principalmente à manipulação da opinião pública pela Lava Jato, com o apoio da mídia. Esse conluio entre parte da mídia e a Lava Jato sempre foi pensado pelo ex-juiz Sérgio Moro desde o primeiro momento. Ele escreveu um artigo sobre isso, não é novidade. São os fatos. Foi um comportamento de que os meios justificam os fins. Consideravam a existência de “bandidos” que precisariam ser colocados na cadeia. Não confiavam na classe política como um todo, estimada inteiramente corrupta, assim como o sistema de justiça. Ele fragilizou as instituições democráticas do país. Foi um discurso anticonstituição, anti devido processo legal, antipolítica, porque se criminaliza uma classe política inteira. O resultado foi o Bolsonaro. 

As imagens da política são pré-carregadas de significados. Já tendemos a amar ou detestar uma imagem, caso ela contenha Lula ou Bolsonaro. Como enxerga o potencial de comunicação de Amigo Secreto?

Estamos extremamente felizes — eu, como produtora, e a Vitrine Filmes, como coprodutora e distribuidora — com a repercussão do público e a resposta dos exibidores. O filme entra em cartaz em 45 salas do Brasil inteiro. Acho que as pessoas precisam ir ao cinema para ver isso num telão, para terem distanciamento em relação aos acontecimentos que são, em parte, dolorosos. Essa catarse é importante. Espero que o filme leve o público a essa reflexão, à melhor compreensão do que estamos vivendo, para podermos superar este momento. Essa é a expectativa. O filme não é um panfleto político. Ele não aponta em quem você deveria votar, e não faz campanha para um candidato em detrimento do outro. Ele somente revela facetas destes candidatos. O filme discute o que eles significam, e o que a opinião de cada um significa em termos de opinião política. Vemos o que cada um deles tem a oferecer, com a experiência que cada um deles nos trouxe nesse passado recente — o que foi viver num governo de Lula, e o que foi viver num governo Bolsonaro. Além disso, o que foi viver no comando de um ex-juiz que através da operação Lava Jato provocou uma série de consequências nefastas para o país. Ele não foi candidato, mas esteve em posição de poder transformador — não no bom sentido.

No ano de 2022, ainda podemos contar com o jornalismo investigativo independente? O próprio El País Brasil fechou as portas.

Acredito que sim, apesar de o El País ter fechado as portas no Brasil. Isso foi muito triste. Apesar disso, acredito que ainda temos a Agência Pública fazendo um trabalho maravilhoso, assim como o Intercept Brasil. Vários outros sites, como os Jornalistas Livres, e diversos influenciadores, jornalistas e intelectuais se posicionam diariamente. Eles pensam e refletem sobre o país. Quero ser otimista em relação ao momento que vivemos, apesar de tudo.

Por que mostrou os jornalistas em suas casas, com as famílias e filhos?

Bom, primeiro porque eles são seres humanos, com suas vidas íntimas. Faz parte do filme também retratá-los como seres humanos. Eles fazem um trabalho corajoso. No caso do Leandro Demori, ele foi e continua sendo ameaçado. Durante muito tempo, precisou andar com seguranças. Esse não é um trabalho fácil, e acaba sendo um investimento em tempo integral. Ver as pessoas trabalhando à noite é importante, precisamos entender a dedicação e essa doação ao trabalho. Além disso, essas cenas trazem um respiro no meio dessa loucura toda. De vez em quando, precisamos de algum silêncio em meio ao caos.

Teve acesso fácil aos jornalistas, às reuniões e entrevistas? Você traz imagens muito fortes da conversa com um executivo da Odebrecht.

Em relação aos protagonistas, foi como em todos os meus filmes. Conheço as pessoas, me interesso por elas, tenho uma identificação por essas pessoas que admiro. Então eu as convido para participarem do filme, e tenho muita gratidão pela confiança. Elas abrem suas vidas para uma câmera e uma equipe de filmagem. Muitos dos juristas e pessoas entrevistadas por eles quiseram participar. Outros recusaram. No caso específico do Alexandrino Alencar, ele foi o único delator que concordou em ser entrevistado e aparecer no filme. Todos os outros têm muito medo de represálias. Tentamos uma entrevista com o ex-juiz Sérgio Moro, mas a assessoria dele respondeu que ele não tinha mais agenda. Tentamos com dois procuradores da Lava Jato, mas não tivemos sucesso. Assim vai. O presidente Lula também não nos deu uma entrevista especial: o material que temos dele é público, correspondente à entrevista ao El País. Um documentário é isso: ele é o produto de um processo de filmagem e edição. Acontecem muitas coisas que não podemos imaginar a princípio.

O cinema integra, hoje, o que se convencionou chamar de “disputa de narrativas”? Amigo Secreto tem a ambição de equilibrar o discurso a respeito da Lava Jato com aquele produzido pela mídia hegemônica?

Disputar narrativas não é a minha função como documentarista, cineasta, artista. O mundo e a realidade são complexos, multidimensionais. Existem muitas narrativas, e num trabalho artístico, isso precisa vir à tona. A complexidade das relações humanas precisa ser revelada neste filme, em qualquer filme. É isso que faz da arte um meio de reflexão. Isso pode ser difícil, complexo. Existe uma tendência na mídia a reduzir a realidade, porque estão lidando com a informação diariamente, enquanto ela acontece. Já o cinema tem a capacidade de distanciamento. Ele pode rever, fazer uma releitura de um processo histórico, ou de determinado acontecimento. Este processo, a meu ver, precisa lidar com essa complexidade. No Amigo Secreto, você ouve a opinião e a fala do ex-juiz Sérgio Moro, e de tudo que foi colocado na época. Mesmo que o filme apresente também o discurso contrário, ele não é um filme imparcial. Não existe cinema imparcial, nem jornalismo imparcial. É uma leitura que faço, como artista e como cidadã brasileira, do que estamos vivendo, e do que vivemos. É claro que tem uma visão pessoal minha sobre o momento histórico.

O Processo foi exibido pela primeira vez em Berlim, mas Amigo Secreto chega diretamente nos cinemas. Pensou em passar pelo circuito de festivais antes, ou talvez em lançar o documentário mais perto das eleições presidenciais?

Primeiro, não é possível lançar o filme próximo das eleições presidenciais. Isso não seria ético, nem desejável. Segundo, o filme acabou de ficar pronto. Era importante, sim, que ele fosse visto antes das eleições, por isso, ainda não conseguiu ir aos festivais. Depois ele ainda pode passar pelos festivais — assim espero. Mas chegamos à conclusão, junto aos distribuidores, de que seria melhor lançá-lo primeiro no circuito brasileiro.

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