Cine Ceará 2022: O corpo e a voz das mulheres negras

Na última quarta-feira, 12 de outubro, foram apresentados os quatro últimos representantes da mostra competitiva de curtas-metragens brasileiros no 32º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema. Três deles trazem, como personagens centrais, mulheres negras reivindicando seu espaço na sociedade. O quarto filme traz uma mulher negra como coadjuvante, dialogando com outra identidade em busca de afirmação política: um trabalhador com nanismo.

Nos palcos do Cineteatro São Luiz, quatro mulheres subiram aos palcos para representar as obras. Embora nem todas sejam as diretoras dos curtas, elas reforçaram o recorte da última noite, e destacaram a valorização de novos olhares e discursos pelo festival. É evidente que a curadoria não precisou se ater apenas a este fator para a escolha dos concorrentes: trata-se de quatro filmes potentes, cujas qualidades, intimamente associadas à identidade e à experiência de seus autores e autoras, se sustentam para além deste critério.

Esta foi a noite mais forte da mostra competitiva, que se conclui num saldo positivo: se houve um ou outro filme mais fraco (em especial, os documentários de teor jornalístico/publicitário, e um singelo filme de terror), a maior parte da seleção levou ao público um conjunto que transparece a ousadia nas linguagens e discursos. A safra foi positiva para o curta nacional no Cine Ceará.

Alexandrina – Um Relâmpago, de Keila Sankofa

O amazonense Alexandrina – Um Relâmpago (2021), de Keila Sankofa, debate a imagem de mulheres negras como aprisionamento, pela perspectiva de sujeitos brancos que os escravizaram e fizeram retratos marcados pelo fetichismo de quem estuda alguém diferente de si. É importante que estas mulheres sejam autoras de suas imagens — reivindica o filme —, ao invés de meros objetos do olhar alheio. Este pensamento ditou a noite inteira no evento cearense.

Se o projeto possui força pela fala articulada e pela exposição de rostos e corpos negros que afrontam a câmera; ele se enfraquece pela direção de fotografia pouco trabalhada, com imagens “lavadas” (sem contraste), focos de luz duros no rosto da atriz e pela utilização de cenários pouco apropriados à dança/performance da criadora. Este é o caso em que o conceito se sobressai à realização.

Celeste sobre Nós, de Natália Araújo

O caráter posado e assumidamente artificial de Alexandrina se contrasta com o despojamento extremo de Celeste sobre Nós (2022). A ficção pernambucana se foca em Marina, uma entregadora de pizza que trabalha pelas avenidas vazias da cidade à noite, enquanto reflete acerca de sua importância na comunidade e, em larga escala, no universo. A diretora Natália Araújo evita criar qualquer problema nas entregas, no trânsito, ou com os colegas de trabalho.

Pelo contrário, paira um coleguismo sadio, uma ambientação melancólica que se abre, microscopicamente, à fantasia. Quando a excelente atriz entra numa casa noturna, a música toma conta do espaço e, num giro da câmera em plano-sequência, os frequentadores desaparecem. Sobram o cantor e a pizza. Esta passagem é fundamental à introdução do elemento espacial sugerido desde o princípio. Embora o cosmos surja de maneira abrupta na conclusão, ele funciona como uma poesia delicada, e incomum enquanto representação de uma vida metropolitana que se costuma associar ao caos e ao perigo.

Último Domingo, de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão

A magia dos céus e das estrelas também está presente em Último Domingo (2022), de Joana Claude e Renan Barbosa Brandão. Desta vez, a cidade contemporânea é substituída por um tempo antigo indefinido, no campo. A fábula em preto e branco, inspirada no Evangelho Segundo Jesus Cristo, de José Saramago, imagina José e Maria negros, recebendo um milagre inesperado em casa: uma terra brilhosa. Aquilo que os humildes trabalhadores interpretam como um milagre; os padres conservadores transformam em bruxaria.

Os diretores apostam numa mise en scène rígida até demais. Apesar do grande elenco (Jéssica Ellen, Edilson Silva, Tonico Pereira, Everaldo Pontes, Ravel Andrade), optam por uma fala dura na boca dos atores, e pela ausência de espontaneidade ou naturalidade. Por este motivo, a conexão desta ficção passada com os quilombos posteriores, quando Maria enfim solta os cabelos e abre o sorriso, funciona como um bem-vindo respiro. O símbolo do menino Jesus negro, brincando com os amigos, encerra bem a proposta dos autores.

Big Bang, de Carlos Segundo

As expectativas eram grandes para Big Bang (2022), último filme da sessão, e recém-premiado no festival de Locarno. Após o belo Sideral, o diretor Carlos Segundo mantém as metáforas espaciais na história de Chico (Giovanni Venturini), técnico de conserto de fornos e outros equipamentos elétricos “onde eu possa entrar”, ele explica. Amargando sucessivas provocações e explorações, seja na condição de trabalhador, seja enquanto homem com nanismo, ele encontra em uma mulher negra a aliança perfeita para uma revanche simbólica contra as classes detentoras do poder.

É ótimo ver Venturini numa obra que valorize seu talento dramático, ao contrário das explorações cômicas de filmes recentes como Maior que o Mundo. O cineasta conduz a trama com cuidado, porém permitindo um humor tragicômico inerente às situações. A cena final, de uma dança livre e relaxada após momentos de tensão, representa a capacidade do diretor em trabalhar com subentendidos. Sem dúvida, um dos grandes filmes da seleção.

Talvez seja preciso apontar que, na ânsia de deixar sua mensagem política clara, os autores sublinham até demais, as desigualdades e falhas estruturais. Frases de efeito marcaram os quatro filmes: “Se resistimos até hoje, é porque nos encontramos. Todos lutamos contra a morte da memória”, avisa a voz off de Alexandrina – Um Relâmpago. “Não existem histórias grandes ou pequenas”, “O acaso é o que a gente faz dele”, garanta mais uma narração em off, desta vez em Celeste sobre Nós. “O maior feitiço é nascer mulher”, garante Maria em Último Domingo; e “A gente é ninguém para esse povo”, constatam os trabalhadores explorados de Big Bang.

É preciso prestar atenção à verbalização de conteúdos, seja de maneira redundante (quando a imagem já os transmitia o discurso por conta própria), seja de maneira explicativa (quando trazem elementos que o autor queria transmitir, mas não conseguia fazer somente via imagens). Ressalvas à parte, trata-se de autores jovens, experimentando linguagens e maneiras de se comunicar. Talvez o equilíbrio entre a politização das formas e o ativismo das palavras venha nos próximos trabalhos de um grupo tão talentoso.

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