A Batalha da Rua Maria Antônia (2023)

A bomba-relógio

título original (ano)
A Batalha da Rua Maria Antônia (2023)
país
Brasil
gênero
Drama, Histórico
duração
84 minutos
direção
Vera Egito
elenco
Pâmela Germano, Isamara Castilho, Caio Horowicz , Julianna Gerais, Philipp Lavra, Gabriela Carneiro da Cunha
visto em
Mostra de São Paulo 2023

Em primeiro lugar, há o choque da imagem. Um dos fatores de maior interesse neste drama político se encontra na busca por uma estética e uma estrutura narrativa próprias, divergindo da maioria de projetos do gênero. A direção de fotografia e as escolhas de montagem chamam tanta atenção a si mesmas que podem desviar o foco da complexa reflexão política e histórica. Antes mesmo da Rua Maria Antônia, há a textura granulada, a captação em 16 mm, o formato de imagem próximo do quadrado e a opção por um branco e preto contrastado.

Tradicionalmente, a captação de dezenas de personagens em cena simultaneamente, além do desejo de valorizar os cenários, resultaria na opção pelo scope (a janela ampla e bastante retangular). No entanto, o diretor de fotografia William Etchebehere privilegia a asfixia da imagem reduzida, dos corpos espremidos. Já a decisão pelo branco e pretos profundos representaria, em primeira instância, o debate político polarizado entre opostos: comunistas e fascistas (pelo menos, é assim que se chamam), militantes e isentos, estudantes da PUC e aqueles do Mackenzie.

Enquanto isso, a narrativa se apresenta em 21 episódios, constituídos por um plano-sequência cada um. Isso significa que existem apenas 21 planos no filme, ou seja, 21 vezes em que a câmera se liga e interrompe. Ao invés de se focar na chegada da polícia à PUC, a diretora e roteirista Vera Egito prefere seguir as horas que antecederam o confronto com as forças da ditadura e resultaram na morte de um estudante. Os segmentos são anunciados por um número em tela, listados em contagem regressiva.

Há poucos elementos consensuais na linguagem adotada por Vera Egito, que estima ser necessário trazer uma aparência arrojada para um conteúdo arrojado.

Deste modo, A Batalha da Rua Maria Antônia produz a impressão constante de uma bomba-relógio, que já começa em altíssima temperatura e apenas aumenta os dilemas a partir de então. Na 47ª Mostra de São Paulo, após tantas obras brasileiras doces e crentes na conciliação entre diferenças através do amor (Saudade Fez Morada Aqui Dentro, Estranho Caminho, Sem Coração, Eu Sou Maria), este projeto caminha no sentido oposto, acreditando que sobretudo no confronto exista função social e valor cinematográfico. No lugar dos abraços, os coquetéis Molotov.

Trata-se de um cinema político no sentido mais explícito do termo — não apenas pelo posicionamento intrínseco a toda obra de arte, mas pelo fato de encontrar na militância uma origem e um objetivo, além de um tema onipresente. Do princípio ao fim, discute-se a importância do voto, a necessidade de proteger a universidade, a decisão de recrutar jovens do Ensino Médio para se unirem ao movimento. Voltamos para casa ou ficamos? Atacamos ou esperamos a polícia? Marchamos na rua ou permanecemos no prédio? Escolhas de estratégia e posicionamento dominam as discussões.

Egito se sobressai na tarefa da ambientação e do ritmo. Raras obras equilibram tantos personagens em cena ao mesmo tempo, conseguindo estabelecer uma hierarquia precisa de foco, som e imagem. Apesar do aparente caos nesta dinâmica, os criadores sabem exatamente quais falas desejam valorizar, quais personagens enquadrar, e quais integram somente a massa coletiva e anônima de estudantes. 

Após instantes muito acirrados de brigas e pavor, surgem outros, contemplativos, dotados de alguma poesia (vide o sexo em efeito caleidoscópico). Algumas escolhas talvez soem ingênuas demais (a canção Roda Viva captada por uma câmera que circula, literalmente, o mezanino do prédio). Em contrapartida, a filmagem dos inimigos numa janela distante, do outro lado da rua, ou os reflexos duplicando os amantes atrás da janela transparecem o controle e estudo precisos da coreografia de câmera. 

Afinal, a obra visa colocar o espectador na função de aluno suplementar em meio ao movimento, andando de um lado para o outro, subindo e descendo escadas, e testemunhando todas as ações (quase) ao vivo. Busca-se uma sensação de onipresença que corresponde bem à urgência dos atos políticos, e comprova o olhar humanitário, disposto a abraçar diversos pontos de vista em paralelo. Embora haja alguns protagonistas (Lilian, Angela, Benjamin, Leda), o coletivo impera, assumindo a posição de objeto de estudo.

Infelizmente, o recurso aos triângulos amorosos prejudica a força do resultado. Compreende-se que a autora queira construir a psicologia dos personagens para além da crise política em que se encontram. Entretanto, as estruturas se repetem: o filme introduz de maneira abrupta dois triângulos amorosos, um formado pela professora com o marido e o amante; e o segundo, com a garota pouco politizada, a jovem por quem é apaixonada e o líder do movimento estudantil.

Nos dois casos, figuras isentas de um posicionamento político ativo adquirem, em poucas horas, uma consciência a respeito da luta social. Logo, a menina excessivamente ingênua, que decide sair sozinha na rua em guerra; e a professora, que jamais suspeitava das atividades reacionárias do marido, despertam para a consciência progressista. Ao final (vide a última imagem), A Batalha da Rua Maria Antônia estima que são elas as verdadeiras heroínas, capazes de brigar com os opositores por amor, e de se arriscarem enquanto contrariam o próprio casamento. 

No entanto, a maneira como estes laços se formam e desatam soa acessória demais, quase novelesca. Não há tempo, em uma estrutura próxima do tempo presente, para desenvolver o carinho e os rancores entre seis pessoas que temem umas pelas outras enquanto bombas são jogadas no prédio. A direção valoriza a inclusão dos afetos LGBTQIA+ representados sem vergonha, embora oculte dos corpos e a nudez em prol de um borrão sugestivo. Encara a política de maneira frontal e realista, mas estima que o sexo precise ser apenas sugerido.

Já a experiência do plano-sequência se dilui. O fato de dividir a curta duração em 21 planos-sequência distintos faz com que cada um possua menos de quatro minutos. Esta já seria uma decupagem em si própria, uma fragmentação em diferentes espaços e tempos. O prazer normalmente associado a este procedimento — a dificuldade de falsear o real, a experiência da narrativa em tempo real, a imersão decorrente do estímulo ao vivo, a admiração da dificuldade técnica — se perdem. Mais do que “21 planos-sequência”, há 21 cenas, uma descrição menos chamativa enquanto estrutura e recurso de marketing (embora ambas as afirmações estejam estruturalmente corretas, é claro).

No final, resta a admiração por uma proposta de ousadia. Há poucos elementos consensuais na linguagem adotada por Vera Egito, que estima ser necessário trazer uma aparência arrojada para um conteúdo arrojado. Ela compreende que a política sangrenta e combativa seja incompatível com os recursos de um drama clássico e televisivo — caso em que demonstra uma maturidade conceitual superior àquela de filmes como , também estrelado por Caio Horowicz. Com suas qualidades e fragilidades, A Batalha da Rua Maria Antônia busca um lugar único na cinematografia brasileira.

A Batalha da Rua Maria Antônia (2023)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.