Alma Viva (2022)

A menina e a morte

título original (ano)
Alma Viva (2022)
país
Portugal, Bélgica, França
gênero
Drama
duração
85 minutos
direção
Cristèle Alves Meira
elenco
Lua Michel, Ana Padrão, Ester Catalão, Jacqueline Corado, Duarte Pina, Arthur Brigas, Catherine Salée, Martha Quina, Leonel Reis, Sónia Martins
visto em
Cinemas

Numa casa repleta de pessoas que vêm e vão, a pequena Salomé (Lua Michel) representa os olhos que tudo veem. Introspectiva, ela circula por todos os cômodos, pelo quintal e pelos campos, quase sem ser percebida. Assim, observa pela batente das portas, através da cortina, ou escuta no cômodo ao lado. A menina descobre que os adultos brigam por dinheiro; que as mulheres disputam o posto de moralidade e rigidez ética; que às vezes os negócios vão mal.

A principal surpresa diz respeito à querida avó, mulher libertária que aceita brincar de “twerk” com a neta e não condena os beijos calorosos na telenovela local, ao contrário das demais mulheres. Esta senhora idosa, cuja morte serve de motor à narrativa, é considerada a “puta” do vilarejo, por ter se relacionado, décadas atrás, com um homem casado. Na terra profundamente religiosa, isso significa que ela teria poderes de sedução capazes de corromper um homem bom. Logo, seria uma bruxa. 

A religiosidade desempenha um papel fundamental na trama. Este catolicismo conservador misturado a um xamanismo se reflete na crença profunda em espíritos, demônios, maldições. “Anda, porque os espíritos podem se agarrar a ti”. “Apaga a luz; vai assustar o espírito”. Fala-se destes seres invisíveis com mistura de medo e reverência, assombro e respeito. De qualquer modo, os mortos convivem com os vivos nas casas suficientemente cheias. 

Alma Viva transparece a iniciativa comum neste cinema ibero-americano disposto a colocar crianças para descobrirem a morte, de maneira discretamente fantástica, porém delicada, respeitosa e atenta ao realismo social.

Desta maneira, não rompem com o real nem causam surpresa: para os habitantes locais, todo fenômeno inexplicável se explica por punições divinas, espíritos obsessores, castigos decorrentes do mau comportamento. Os adultos se tornam tão autores de suas próprias ações quanto condicionados à boa vontade destes co-moradores caprichosos e de vontades incompreensíveis. Fazem o que desejam, mas às vezes, executam o que sentem que precisam fazer, em nome da honra, do bom senso, da pureza. 

A câmera acompanha o comboio de vivos e mortos com naturalidade, observando-os de perto, porém sem se aproximar demais dos corpos. A exemplo de Salomé, observa pelos cantos e corredores. Por isso, desperta a impressão de espiar, porém, com relativo consentimento para tal. Embora as pessoas não prestem atenção, sabem da presença da menina (e da câmera) em algum lugar ao redor. A própria garota se assemelha, em alguns momentos, a um fantasma invisível e onipresente, posto que tantos baques a tornam emudecida, isolada, antissocial. 

Ela se deita no chão, sentindo a madeira tal qual faz o corpo da avó no caixão. Num gesto de raiva, e de vontade incontrolável de experimentar a finitude, assassina as galinhas e suja-se de sangue. A diretora Cristèle Alves Meira faz questão de transformar a morte em algo palpável e corpóreo: é preciso filmar o cadáver de perto, e dar atenção às moscas que se aproximam do corpo em estágio inicial de putrefação. Ela registra corpos nus, seios expostos, peixes mortos, galinhas mortas. É preciso que os sentimentos se exteriorizem nos corpos, em meio a uma temporada de calor, marcada pelo fogo da purificação ou inquisição.

Em determinados instantes, Alma Viva se aproxima da comédia de costumes. Duas irmãs brigam por dinheiro, começam a se bater literalmente durante o velório, e caem sobre a falecida que desaba no chão, junto ao caixão. Há um homem cego, espécie de oráculo (o roteiro insiste que ele enxergaria muito mais sobre as pessoas pelo fato de não ver) cuja maneira de se portar remete à comédia. Este é o tom privilegiado pelo trailer, aliás. Outras cenas, em contrapartida, aproximam-se belamente do cinema de terror: o aspecto grotesco da morte das galinhas se assemelha a um ritual de possessão. Observando-se no espelho, Salomé enxerga o rosto da avó morta projetado sobre o seu. 

Ambos os caminhos seriam frutíferos, no entanto, a cineasta insiste em não aprofundar nenhum destes gêneros. Eles permanecem no limite da sugestão, retornando sempre ao drama polido, bem filmado e produzido, com atuações cuidadosamente naturalistas. É possível acreditar que as pessoas se comuniquem daquela maneira, através de falas de aparência improvisada, em cotidianos caóticos, semelhantes à vida comum de tantas pessoas de classe média-baixa. Os diálogos fluem entre o português e o francês com igual facilidade.

Meira adota a cartilha do filme de personagens, olhando com igual atenção para todos os adultos, equilibrando a presença de uma dúzia de figuras através da montagem paralela. Ela trabalha com atores não-experientes, que claramente conhecem este cenário e suas regras sociais, reproduzindo uma versão fictícia de si mesmos. Atinge, portanto, um misto de despojamento (os corpos sem vaidade, a fala ao limite do vulgar, o jogo cênico “cru”) e preciosismo (visto que todas as trocas são evidentemente roteirizadas, com pouca abertura ao acaso, buscando atribuir valor à autora pelo fato de trabalhar com um material bruto).

Não há problema nenhum nesta configuração do olhar polido às classes populares pela chave do filme-de-festival. A diretora domina estes códigos, demonstrando uma consciência importante do uso de luz natural, da montagem contemplativa, mas nunca arrastada, dos diálogos plausíveis, porém acessórios na tarefa de fazer a narrativa avançar. Nenhuma cena soa particularmente arriscada, ousada: opera-se na chave do bom gosto do cinema de estúdios independentes europeus, o que justifica a presença na Semana da Crítica do Festival de Cannes, e no Oscar, enquanto representante de Portugal na disputa pela estatueta de melhor filme internacional.

No entanto, Alma Viva transparece a iniciativa comum neste cinema ibero-americano disposto a colocar crianças para descobrirem a morte, de maneira discretamente fantástica, porém delicada, respeitosa e atenta ao realismo social. Obras-primas do cinema foram produzidas neste registro, caso sobretudo de O Espírito da Colmeia (1973), de Victor Erice, e Cria Corvos (1976), de Carlos Saura, que se tornaram referência absoluta para uma série de novos diretores que reproduzem, à exaustão, estes códigos sociais e cinematográficos.

Alcarràs (2022), de Carla Simon; Totem (2023), de Lila Avilés; 20000 Espécies de Abelhas (2023), de Estibaliz Urresola Solaguren; A Primeira Morte de Joana (2021), de Cristiane Oliveira; Manto de Gemas (2022), de Natália Lopez Gallardo; Clara Sola (2021), de Nathalie Álvarez Mesén; Tarde para Morrer Jovem (2018), de Dominga Sotomayor. Estes são apenas alguns dos casos de obras dramáticas dirigidas por jovens mulheres cineastas, transitando com delicadeza pelo realismo fantástico, com uma câmera na mão, explorando o olhar de crianças que descobrem e morte, a religião e o mundo cruel dos adultos. O cenário rural é privilegiado nestes casos, pela capacidade de estabelecer uma relação entre a transcendência e o caráter insondável da natureza.

Alma Vida representa, portanto, um filme muito competente numa linhagem de filmes muito competentes. Dificilmente se distinguiria por qualquer traço superior, ou inferior àqueles detectados nas obras acima. Ele somente aponta para uma maneira específica de se expressar, privilegiada pelos grandes festivais dentro das propostas de jovens autoras. Por isso, tornam-se uma das únicas formas conhecidas internacionalmente do cinema de tantas diretoras mexicanas, brasileiras, argentinas, portuguesas, espanholas. Trata-se de um recorte limitado, repetitivo, e representativo do que os curadores (em sua grande maioria, homens em festivais liderados por homens) desejam ver do outro, seja ele o feminino, seja o povo de baixa renda de um país diferente. 

Alma Viva (2022)
7
Nota 7/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.