Disco Boy (2023)

O colonizador também dança

título original (ano)
Disco Boy (2023)
país
França, Itália, Bélgica, Polônia
gênero
Drama, Guerra
duração
91 minutos
direção
Giacomo Abbruzzese
elenco
Franz Rogowski, Morr Ndiaye, Laëtitia Ky, Leon Lučev, Matteo Olivetti, Robert Więckiewicz, Michał Balicki
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Disco Boy é um filme estranho, para dizer o mínimo. A cerca de dois terços da trama, ainda não se sabe ao certo onde o diretor Giacomo Abbruzzese pretende chegar com as duas histórias paralelas, nem exatamente o ponto de vista que estabelece diante da tragédia. É difícil saber em que medida ele se identifica e solidariza com instituições citadas, como a Legião Estrangeira, onde trabalha um dos protagonistas, e a Frente de Libertação da Nigéria, onde trabalha o outro. Sente pena dos mortos nas florestas? Fica do lado das vítimas, dos agressores, dos mandatários?

Tamanha indefinição decorre do fato que os personagens africanos constituem, para o cineasta, sobretudo uma matéria plástica. O filme se abre com a imagem de dezenas de homens negros empilhados, dormindo uns sobre os outros, brilhando muito bem ao luar (a fotografia pertence à excelente Helène Louvart). Em seguida, um close-up revela Jomo (Morr Ndiaye) com um dos olhos amarelos, traço típico dos moradores do povoado. No entanto, jamais compreenderemos a importância política ou cultural deste fator diferencial. Ele é retratado, neste caso, como um artefato de moda utilizado por rapazes e garotas belíssimos, que posam para o enquadramento.

Julgando pela cena inicial, os protagonistas aparentam ser Aleksei (Franz Rogowski) e Mikhail (Michał Balicki), rapazes bielorrussos buscando se divertir na Europa. Depois, o foco se encontra apenas em Aleksei. Em seguida, entra a história de Jomo, líder dos guerrilheiros. A montagem se esquece por muito tempo dos franceses e imigrantes. Então o foco parece ser a Legião Estrangeira, como instituição, e a seguir entra em cena a guerra, que toma à frente do discurso. Ao contrário de um projeto sem foco, este aqui possui focos até demais. O autor se depara com uma encruzilhada no final de cada cena, fecha os olhos, e toma uma direção qualquer. 

Abbruzzese nutre forte exotismo por estes homens e mulheres negros, pintados de cores incomuns, dançando de maneira desconhecida pelos europeus.

O resultado soa como um freestyle, um conjunto de peças que possuem notáveis belezas em separado, ainda que formem um conjunto problemático. Primeiro, porque o ponto de vista jamais pertence ao jovem africano, nem o interesse reside em sua luta, mal detalhada e abandonada com rapidez. O falso paralelismo entre os dois combatentes sempre pende em favor do novo-francês, rebatizado Alex. O duelo entre ambos, antes da metade da jornada, determina com rapidez de qual lado se encontra o olhar da direção (graças à atenção dedicada a cada um; ao desfecho dado às vítimas, enterradas em questão de segundos; e dos algozes, que saem voando de helicóptero, honrados).

Abbruzzese nutre forte exotismo por estes homens e mulheres negros, pintados de cores incomuns, dançando de maneira desconhecida pelos europeus. A dança de irmão e irmã em transe constitui o ápice desta pseudo antropologia fetichista, na qual se admira a alteridade pela grande lacuna em comparação com o referencial francês, mas sem fazer o mínimo esforço para entender o peso destes rituais na comunidade dos combatentes. A “aquisição” de uma garota do local para trabalhar na boate jamais suscita com qualquer forma de estranhamento ou questionamento. Contanto que a garota possa dançar de maneira tribal sob as luzes neon, gerando belos frames e composições, o diretor se dá por satisfeito.

Mesmo as performances de Udoka (Laëtitia Ky) são desprezadas pelo enquadramento, sendo percebidas como fundo de plano, mero motivo para justificar a reação embasbacada de Alex. Agora, dançando como os africanos, possuído — literalmente — pela africanidade, ele toma consciência de seus gestos e da guerra. Além de tratar a identidade daqueles povos como sinônimo de feitiçaria; o cineasta ainda reforça que todo o sofrimento vale a pena caso o herói passe por uma transformação e se torne uma pessoa melhor ao final. “Talvez eu tenha matado seu irmão, né? Não tem problema! Vamos dançar!”.

Em oposição às pinturas e movimentos estranhos dos coadjuvantes, a Legião Estrangeira fornece, como contraponto, a maravilha dos vinhos Bordeaux, acolhimento aos estrangeiros de qualquer origem (“Aqui, todos têm uma chance!”) e a canção Non, Je Ne Regrette Rien, entonada como hino pelos estrangeiros-reconvertidos-em-franceses. Prega-se a assimilação econômica, cultural, a incorporação do outro, evitando manifestar o mínimo interesse em suas culturas e situações de origem. Aleksei torna-se Alex, e agora deveria ser mais feliz por defender a bandeira do novo país. O filme critica uma ou outra liderança no movimento, mas evita questionar a instituição na totalidade. Aparentemente, com a exceção do protagonista, os demais soldados estão contentes, bem alimentados e tratados.

Em meio ao neocolonialismo chic, sobra espaço para uma sequência de luta filmada com lentes infravermelhas (para sugerir que os dois lutadores seriam iguais em carne, osso e humanidade? Não, apenas pela distinção, pela possibilidade de fazer diferente). O diretor permite ao protagonista que entre em todos os lugares desejados, durma nas camas que escolher, seja perdoado por comportamentos ruins, e recompensado no final ao receber a única fala gentil de um instrutor autoritário. Não há dúvidas sobre onde recai a idealização e a defesa política, neste caso.

Ainda mais problemáticas seriam as insinuações de que ambos os homens lutaram suas batalhas, que seriam equivalentes, tendo experimentado sofrimento igual. A proposta fantástica de fusão entre os dois, e de dança colaborativa entre algozes e vítimas, com evidente interesse sexual do homem branco-eslavo pela menina negra, provoca forte incômodo neste posicionamento. Vence a plasticidade, a assimilação pela força, a tomada de cultura, a apropriação sexual e escravização econômica dos mais fracos. Surpreende que uma obra tão elegante, endinheirada, contando com inúmeros produtores de tantos países, não tenha questionado um pouco mais o discurso e a natureza das imagens.

Disco Boy (2023)
3
Nota 3/10

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