In the Blind Spot (2023)

A câmera que tudo vê

título original (ano)
Im Toten Winkel (2023)
país
Alemanha
gênero
Drama, Suspense, Policial
duração
118 minutos
direção
Ayşe Polat
elenco
Katja Bürkle, Ahmet Varlı, Çağla Yurga, Aybi Era, Maximilian Hemmersdorfer, Nihan Okutucu, Tudan Ürper, Mutallip Müjdeci, Rıza Akın, Aziz Çapkurt
visto em
73º Festival de Cinema de Berlim

Este filme não seria possível sem a presença de telefones celulares. O celular não apenas produz parte considerável das imagens utilizadas na narrativa (no formato habitual atualmente, na vertical), mas se torna um dos principais personagens de In the Blind Spot. Todos os personagens carregam câmeras consigo, e filmam tudo, o tempo inteiro. Eles registram a si próprios, mas também os filhos, esposa, os chefes. O olhar se expande aos vizinhos, aos transeuntes nas ruas. Sempre existe alguém observando uma segunda pessoa que, por sua vez, observa a terceira, e assim por diante.

A diretora Ayşe Polat estrutura o filme através de três formas de registros, associados a três tipos de câmera. O capítulo 1 é focado na produção oficial de um documentário, apoiado em câmeras profissionais. Uma diretora alemã realiza um projeto a respeito das violações de direitos humanos na Turquia, tendo como caso principal o desaparecimento de um garoto, em frente à mãe, há mais de 20 anos. Neste caso, as captações são consentidas, e possuem as devidas autorizações. As pessoas sabem que estão sendo registradas, e chegam a posar para tal, repetindo entradas e saídas de quadro, para as necessidades do filme-dentro-do-filme.

O capítulo 2, no entanto, aumenta o grau de informalidade da captação. Neste instante, são os celulares que dominam a cena, graças à presença de Zafer (Ahmet Varlı), um mafioso com interesse em impedir o documentário da equipe estrangeira. O homem segura um celular nas mãos a todo momento, quando não deixa o dispositivo no bolso da camisa, filmando as pessoas sem sabê-las. Descemos um grau no nível do consentimento, e também na invasão de privacidade. A abordagem se torna mais amadora, mais livre em termos de enquadramento, sempre disposta a correr junto dos personagens, girando à direita e à esquerda. Se a produção do terço inicial tinha pretensões artísticas, esta se distingue radicalmente, servindo como registro pessoal.

Há tantas guinadas de tema, tom e ponto de vista que, no final, ao invés de as peças formarem um único quebra-cabeça, apontam a histórias diferentes, incompletas.

Isso conduz ao capítulo 3, onde reinam as câmeras de segurança. Agora, não há ninguém filmando (o dispositivo foi plantado às escondidas, e deixado sempre ligado), e os personagens ignoram por completo o fato de estarem sendo gravados. Esta seria uma câmera de aparente objetividade (o ângulo está aberto para captar tudo e qualquer coisa à sua frente), em modo tão automático quanto voyeur. Por isso, capta a casa de Zafer, sua esposa, a filha, os jantares com amigos. A questão do ponto de vista se altera sensivelmente: não se sabe mais o que será filmado, nem de que maneira poderá ser utilizado depois. A imagem passou de arte, no terço inicial, para documento pessoal, na segunda metade, e registro fatual, no último terço.

Esta divisão em três atos soa fascinante, como se o longa-metragem nos propusesse um verdadeiro estudo a respeito da natureza das imagens e de nossa convivência diária com gravações. No entanto, o resultado se mostra menos frutífero, em virtude dos contorcionismos de lógica efetuados para comportar tais mudanças. Em outras palavras, o conteúdo parece ter sido moldado para caber no pressuposto anterior, não o contrário. A forma não se adequa ao conteúdo: a imposição de uma forma prévia exige um conteúdo amplo e vago o bastante para se acomodar às alterações do dispositivo. Pode-se falar num exercício audiovisual, mais do que uma discussão a respeito de um tema em particular.

Assim, In the Blind Spot parece apontar para as milícias turcas, e a censura extraoficial de quem se arrisca a denunciar o regime. A presença de um advogado de direitos humanos, testemunhando oficialmente em frente às câmeras, aponta na direção de um estudo sobre violações e restrições. Infelizmente, conforme o preceito se desenvolve, o mundo externo também some do radar da mise en scène. O filme mergulha de cabeça no suspense policial, entregando o protagonismo a Zafer e deixando o homem paranoico cuidar de todas as mortes e perseguições necessárias. Jogos de intriga, olhares estrangeiros e mesmo uma presença sobrenatural se inserem de maneira pouco orgânica no projeto.

Em consequência, conforme a trama se desenvolve, perde a verossimilhança e prejudica o trabalho de psicologia dos personagens. Ahmet Varlı se entrega a um jogo exagerado, demarcado demais no medo e no pavor, com os olhos arregalados, enquanto os close-ups reforçam uma emotividade claríssima por si própria. Çağla Yurga, a filha com um “amigo imaginário”, está claramente respondendo a comandos da direção, de maneira tão eficiente quanto desafetada. É visível a presença de um diretor falando: “Agora anda daqui até ali e para”. “Agora joga a vasilha de salada no chão”. “Agora pega o celular e se esconde no armário”

As motivações são contestáveis, porque funcionais e conscientes demais. Nem o pai, numa intensidade exacerbada, nem a garotinha fria demais correspondem ao suspense elegante que o diretor busca criar, e que parece lhe escapar das mãos à medida que introduz novas reviravoltas improváveis. Há tantas guinadas de tema, tom e ponto de vista que, no final, ao invés de as peças formarem um único quebra-cabeça, apontam a histórias diferentes, incompletas. A cena final, aliás, soa diretamente extraída de um filme de terror banal, marcado por possessões demoníacas. 

É claro que o prazer deste mecanismo astucioso se sobrepõe aos cuidados com a narrativa e o elenco. In the Blind Spot sustenta a atmosfera de tensão, graças às inúmeras dúvidas no ar, e à impressão de que todos os observadores também estão sendo observados. No entanto, tem dificuldade de justificar que os ladrões produzam provas ininterruptas de seus crimes, ou que um olhar externo consiga captar imagens escondidas magicamente, enviando-as ao destinatário de imediato. O thriller político perde aos poucos o aspecto político, e depois o aspecto de thriller, para se tornar uma fantasia sobrenatural próxima do horror.

Ao final, o confronto entre três registros resulta menos numa discussão a respeito da natureza das imagens do que num sintoma de como a forma pode se esgotar, caso seja dissociada do conteúdo. A diretora comprova, involuntariamente, que o jogo pelo jogo se esgota numa premissa retórica, simples malícia da direção, e não consegue sustentar duas horas de narrativa. Ao final, não teremos seguido a trama pelo ponto de vista da diretora alemã, da tradutora turca, do mafioso, da filha, nem dos capangas. Teremos visto imagens despossuídas, não observadas nem refletidas por ninguém. São gravações improváveis, raras, mas também ocas e despersonalizadas — um cinema sem olhar.

In the Blind Spot (2023)
4
Nota 4/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.