Memorias de un Cuerpo que Arde (2024)

Retrato falado

título original (ano)
Memorias de un Cuerpo que Arde (2024)
país
Costa Rica, Espanha
linguagem
Drama, Documentário
duração
90 minutos
direção
Antonella Sudasassi Furniss
elenco
Sol Carballo, Paulina Bernini, Juliana Filloy, Liliana Biamonte, Juan Luis Araya
visto em
74º Festival de Cinema de Berlim (2024)

Entre 2000 e 2005, a atriz Denise Fraga estrelou na televisão brasileira o quadro Retrato Falado. A produção recebia cartas de espectadores, contando episódios de suas histórias, que eram encenados pela atriz num misto de drama e comédia. Os segmentos fictícios se intercalavam com o rosto e a voz das pessoas verídicas, relembrando o trecho narrado. O humor se encontrava, em partes, na junção do real com o tom levemente exagerado, ou no encontro da vida comum com o caráter especial de ter uma grande atriz disposta a encená-la.

Algo semelhante ocorre em Memorias de un Cuerpo que Arde, de Antonella Sudasassi Furniss. O filme costa-riquenho parte de “conversas que gostaria de ter tido com a minha avó”, nas palavras da cineasta. Afinal, seja pudor, seja pela pressão dos rígidos códigos morais da época, as mulheres de gerações passadas não poderiam comentar seus desejos sexuais na juventude e na idade avançada, os traumas relacionados ao casamento, as gestações, os abusos domésticos.

Por isso, a cineasta elabora uma espécie de homenagem às mulheres que poderiam ser nossas avós, dando-lhes a oportunidade de revelarem o prazer da masturbação, o descontentamento com a maternidade, o estupro conjugal e outras passagens marcantes. No entanto, as personagens impõem como pré-requisito o anonimato de seus rostos. Temos acesso às vozes, mas não à identidade. Estranha maneira de representar o suposto orgulho de suas vivências — tenta-se reparar uma invisibilidade com outra invisibilidade.

Os registros sonoros se tornam o verdadeiro motor da narrativa, preciosos em suas confissões e sentimentos. Já as encenações se limitam a ocupar o tempo da projeção.

Na ausência de recursos imagéticos, Furniss recorre aos retratos falados. Elege uma atriz responsável por encenar os causos evocados pelas vozes fantasmáticas. Às vezes, Sol Carballo nem sequer reproduz os gestos sugeridos pela narração em off, mas se desloca pelo espaço doméstico, a esmo. Ela anda da sala para a cozinha, arruma uma pilha de objetos na cômoda, passa creme no rosto, abre as janelas. Evoca uma existência genérica e ampla de ser mulher após os 70 anos, sem promover nenhuma diferenciação entre as distintas vozes. A protagonista ilustra um corpo, uma ideia da feminilidade.

Por isso, é difícil não perceber o desnível entre som e imagem, em termos de cuidado ou atenção. Os registros sonoros se tornam o verdadeiro motor da narrativa, preciosos em suas confissões e sentimentos. Já as encenações se limitam a ocupar o tempo da projeção, fornecendo ao espectador algo para onde olhar enquanto escutamos ao podcast das senhoras idosas. Nenhuma ficcionalização durante os 90 minutos possui interesse próximo àquele das confissões. 

As imagens se tornam redundantes, repetindo o conteúdo sonoro, ou promovendo um reforço dos sentidos, tal qual ocorre nos vídeos institucionais de companhias aéreas, por exemplo. Nestes, a mensagem nos chega pelas vozes dizendo para atar os cintos e colocar a poltrona na posição vertical. As imagens divertem, distraem, porém, servem de mero suporte a uma lição prévia. De certo modo, o teor lúdico destas peças promocionais se aproxima daquele obtido no longa-metragem no sentido de atenuarem o peso das falas, fazendo com que a aula soe menos professoral. 

A cineasta até busca alguns procedimentos estéticos destinados a representar as diferentes gerações de mulheres. Coloca em cena uma câmera giratória, capaz de apresentar sua atriz em várias ações durante um único plano. O dispositivo também permite entradas e saídas da atriz mirim Juliana Filloy, que encarna a filha, ou de Liliana Biamonte, no papel da mãe, quando convém aos relatos. Assume-se desta maneira a vocação teatral de um grande faz de conta, uma recriação lúdica dos fatos. 

Para citar a primeira paixão da menina, vemos a jovem atriz com olhar com interesse para o garoto ao lado. Para a descrição do corpo modificado pela idade, Carballo admira sua nudez ao espelho. Neste momento, o enquadramento esconde cuidadosamente os seios, afinal, estamos em um filme que escancara as feridas pela metade, com bastante pudor. Na provável tentativa de se tornar menos invasiva à intimidade de suas personagens, a cineasta permite que estas controlem a narrativa, e determinem aquilo que será dito ou visto, quando, e de que modo. Torna-se refém das personagens.

Em 2022, o cinema argentino havia trazido uma proposta semelhante, no formato de curta-metragem. Ora, Viejas que Hiervem, de Violeta Tapia, revela-se muito mais corajoso, a começar pelo título: “Velhas que fervem”. Mostra o corpo das mulheres, entra em detalhes vida sexual, comenta o lesbianismo de duas senhoras. No equivalente costa-riquenho, a narrativa se encerra antes de entrar nos detalhes. “Se eu falar mais, vai virar um filme pornográfico”, declara uma das senhoras em off. A descrição de um ato sexual constituiria, em si, uma pornografia? 

Memorias de un Cuerpo que Arde se encerra na condição de feel good movie, sustentando uma aparência muito mais provocadora do que realmente é. Contém, de fato, relatos potentes acerca dos traumas de mulheres nunca escutadas em suas dores e prazeres. No entanto, ainda dificulta a identificação com estas mulheres sem rosto, ilustradas por cenas sem violência nem sexo, nem metáforas capazes de representá-las. A direção possui recursos e imaginação limitados para aludir, na construção fictícia, aos sentimentos descritos por suas personagens. Contenta-se com a fala terapêutica, a confissão pela confissão. Quanto às imagens, elas serão dispensáveis, secundárias. Há algo mais triste, no cinema, do que um filme onde as imagens não importam?

Memorias de un Cuerpo que Arde (2024)
4
Nota 4/10

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