Sobreviventes do Pampa (2023)

título original (ano)
Sobreviventes do Pampa (2023)
país
Brasil
linguagem
Documentário
Duração
78 minutos
direção
Rogério Rodrigues
visto em
Festival de Gramado 2023

Seguindo a linhagem de documentários apresentados no Festival de Gramado 2023, Sobreviventes do Pampa corresponde a um filme “de tema”, ou seja, um projeto movido pela nobreza e importância da temática estudada. Após filmes que defendem o cinema gaúcho (Um Certo Cinema Gaúcho de Porto Alegre), declaram seu amor ao escritor Luís Fernando Veríssimo (Luís Fernando Veríssimo — O Filme) e atacam a exploração trabalhista dos motoboys (Da Porta pra Fora), este aqui sublinha a importância histórica, social, cultural e política do Pampa.

A direção de Rogério Rodrigues ataca por várias frentes para convencer o espectador de sua hipótese. Primeiro, recorre à memória afetiva (a narração relembra a visita aos avós e o cheiro da terra molhada). Depois, lança dados acerca da preciosidade que reside na fauna e flora locais. Em seguida, evidencia o valor histórico deste território para o sul do país. Alerta sobre o potencial econômico do desenvolvimento das terras. Entrevista moradores dotados de profunda conexão pessoal e familiar com o bioma. 

Em especial, a narrativa sugere uma percepção do pampa enquanto modo de vida. O roteiro vai além dos argumentos racionais pelos quais este espaço deveria ser protegido e preservado. Ele estima que o desaparecimento das terras implicaria no sumiço de uma riqueza histórica inestimável, prejudicando pessoas para quem a terra, a música, a comida, a lavoura coexistem num único movimento. Os criadores jamais ocultam a vocação desta obra de arte para se converter num panfleto militante, uma peça de luta política. A quem interessar possa, esta região é linda, rica, e está em risco. Façamos algo a respeito.

Os melhores instantes do documentário provêm dos raros fragmentos de poesia, quando a narrativa se livra da obrigação de explicar e convencer.

Por isso, o cineasta recorre a ferramentas retóricas, comuns aos filmes de convencimento. A mais chamativa delas diz respeito às perguntas lançadas pelo narrador em off: “Será que este patrimônio cultural e natural vai desaparecer antes mesmo de o conhecermos?”. “Quantas pessoas ainda terão que deixar seus territórios para permitirem uma revolução da qual não são incluídas?”. “Haverá tempo para salvarmos o bioma?”. “Será que as pessoas que defendem as mineradoras consideram todos estes impactos [ambientais]?”. Estas interpelações, vagas enquanto forma de comunicação (pois o narrador conhece a resposta para as perguntas que efetua), carregam uma intenção pedagógica evidente.

Em paralelo, Rodrigues utiliza imagens abrangentes, em planos aéreos, durante dias ensolarados, para idealizar a beleza do local — a montagem se encerra com a imagem de um carneirinho pastando pacificamente. Ele filma pessoas com lágrimas nos olhos ao mencionarem a ternura infinita pelas terras. Assim, apela tanto à razão quanto à emoção, tanto aos indivíduos comuns quanto a possíveis empresários. A todos, há motivos suficientes para valorizar esta parcela suntuosa do Brasil.

A paixão pelos arredores leva os criadores a mudarem cadeiras e poltronas, comuns aos documentários de entrevista, para o meio da natureza. Sentados sobre as planícies, os convidados emitem pensamentos acerca do Pampa, em vertentes múltiplas e mal organizadas pela montagem. Fala-se em identidade, na luta política, em aspectos históricos, no uso de agrotóxicos, na diferença de denominação entre “o pampa” e “a pampa”. 

Todas estas análises se mostram pertinentes, embora pudessem ser organizada de modo mais coeso, de modo que um ponto de vista fosse esgotado antes de passar ao seguinte. Aqui, estas perspectivas se cruzam, cedem espaço à próxima, para então retornarem àquela mencionada previamente. Privilegia-se um fluxo de imagens a uma coesão temática, ou ainda, uma coerência de luzes e paisagens àquela de reflexões.

Ainda mais curioso é perceber o diretor Rogério Rodrigues enquadrado na maioria das conversas. Não se filma apenas o entrevistado, nem o diretor no tradicional over the shoulder. Rodrigues está presente tanto quanto os habitantes locais, e devido à recorrência, converte-se em personagem principal, com mais tempo de tela. Qual era a importância de se colocar em cena desta maneira, com tamanha frequência, para além da vaidade do autor? Se o foco se encontrava no outro (pois o diretor confessa que desconhecia as peculiaridades do Pampa antes do filme), por que jogar foco equivalente para si?

Os melhores instantes do documentário provêm dos raros fragmentos de poesia, quando a narrativa se livra da obrigação de explicar e convencer. A cantoria de dois homens em contraluz, apenas delineados pelo pôr do sol, evidencia o potencial das imagens enquanto produtoras de significado. Muito melhor do que falar sobre a beleza da pampa é mostrá-la. Ao invés de citar a cultura riquíssima da região, em repetidas investidas elogiosas, capture-a pela delicada canção de dois homens. 

Caso a obra nos permitisse apenas observar este espaço e deixar o espectador tirar as suas conclusões, ela ganharia em potência. São curiosos os projetos que parecem não confiar em suas próprias imagens, ou na inteligência do espectador — às vezes, em nenhum dos dois. Estimam ser necessário, portanto, justificar, trocar em miúdos, repetir seu discurso. “Entendeu bem? E agora? Tem certeza? Posso falar de novo. Que tal mais uma vez?”.

O rápido fragmento de uma mulher alimentando os animais, em silêncio, possui mais valor estético e político (pois ela controla a cena, ao invés da voz de uma pessoa externa) do que uma fala acerca da importância em proteger os animais. Muitos documentários próximos da reportagem ignoram a capacidade de suas captações em transmitir uma verdade própria.

Resta em Sobreviventes do Pampa sobretudo a fala bem escrita, e enunciada tal qual um professor dedicado, em som limpo, pausado, com a preocupação em ser claro a todos. Ressente-se da ausência de material de arquivo, que permitiria perceber a evolução deste espaço e a sua degradação, para além da insistência em transmitir verbalmente estes acontecimentos. Este é o problema da obra bem-intencionada, porém fraca enquanto uso da linguagem cinematográfica: ela tem muito a contar, mas pouco a mostrar.

Sobreviventes do Pampa (2023)
4
Nota 4/10

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