Upa, Neguinho! (2022)

Introdução aos quilombos

título original (ano)
Upa, Neguinho! (2022)
país
Brasil
gênero
Documentário
duração
53 minutos
direção
Douglas Carvalho dos Santos
elenco
Kunta Leonardo da Cruz, Djankaw Kilombola de Lima Marques, Priscilla Pontes, Laremi Paixão, Samuca, Isabela da Cruz, Rosa de Moraes Camargo da Cruz
Visto em
11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba

Kunta Leonardo da Cruz dança. Diante do pôr do sol, enxergamos apenas a silhueta do rapaz, com os pés fincados na natureza, executando uma coreografia. Antes mesmo da primeira palavra emitida pelo dançarino, ou da descrição de terceiros a respeito de seu percurso, o espectador tem a oportunidade de vê-lo em atividade durante alguns minutos. O documentário encontra um belo início ao perceber que a dança, por si própria, carrega significado e descreve seu protagonista melhor do que qualquer palavra o faria.

Em seguida, o personagem se aproxima do público através das ferramentas convencionais do cinema-reportagem: ele se apresenta, descreve as aulas com crianças, a condição de quilombola, de assentado e LGBTQIA+, lutando para garantir a visibilidade da cultura negra em meios tradicionalmente brancos como as universidades brasileiras. Este contato ocorre em partes via voz off, sobreposta a registros do corpo em movimento, e em partes no formato padrão da entrevista concedida diretamente à câmera.

Upa, Neguinho! (2022) articula-se quase inteiramente nesta fronteira entre um cinema de poesia e a aproximação literal do discurso político. Caso multiplicasse as performances e criasse uma estética apropriada à representação mítica dos orixás, talvez alcançasse um teor próximo do excelente Cavalo (2021), para quem a estética carrega o significado político em si mesma. Caso abandonasse as danças e se ativesse às falas de especialistas e artistas, ficaria ao lado do cinema jornalístico, para quem a dança e a cultura negra se limitariam a objetos de estudo.

Felizmente, o diretor Douglas Carvalho dos Santos compreende a importância de conferir voz e protagonismo a Kunta Leonardo da Cruz. É ele quem guia o espectador e a câmera pelas divisões do Quilombo Paiol de Telha, quem presta esclarecimentos históricos e sociais acerca desta dança (e de sua diferença em relação a rituais) e que demonstra os passos diretamente à imagem. Em algumas cenas, o artista conversa com amigos, e a equipe cinematográfica se posiciona logo ao lado, sem disfarçar, absorvendo cada palavra.

Os instantes de apresentação coreográfica possuem qualidade variada. Perto de árvores, no campo ou sobre o palco teatral, com fundo preto, a dança se desenvolve da melhor maneira — seja plenamente inserida na natureza, algo condizente com o modo de vida do artista, seja nos moldes formais do dispositivo cênico. No entanto, a dança no apartamento, com os móveis afastados, provoca certo incômodo. A própria câmera hesita quanto a onde olhar, deslizando dos pés à cabeça, ao torso, e correndo aos pés novamente.

Upa, Neguinho! articula-se quase inteiramente na fronteira entre um cinema de poesia e a aproximação literal do discurso político.

O olhar gostaria de estar ao mesmo tempo à distância, para vê-lo por inteiro, e perto demais, para admirar cada contração dos músculos e dedos, porém não consegue. Existe uma indefinição conceitual diante do corpo do protagonista, algo que diminui o impacto de seus gestos. De mesma maneira, os ensinamentos didáticos na sala de estar, para aluno nenhum, provocam uma artificialidade incômoda: por que não acompanhar a aula comum do professor com seus alunos? 

Seja por conflitos de produção ou pudor da direção, muitos elementos são retratados apenas em terceira pessoa. Fala-se de uma grande comunidade quilombola, embora não a vejamos nas cenas. Menciona-se o carinho com os alunos, também ausente nas cenas. O preconceito na universidade, e a compreensão de uma arte pressuposta como branca, também se concretizariam caso a câmera simplesmente penetrasse o ambiente universitário e testemunhasse uma aula. Falta imergir nos espaços e nos núcleos mencionados indiretamente.

A ampliação do olhar e das ambições cinematográficas faria bem ao projeto, que limita as conversas entre profundos conhecedores dos orixás, dos quilombos e das danças de matriz africana. Eles dialogam entre si sobre temas que dominam, apenas para informar o espectador. Deste modo, despertam a impressão de uma comunicação retórica, encenada. Todos em cena têm muito a dizer, e o expressam com uma paixão notável. No entanto, a possível conversa com familiares, ou com colegas de universidade fora deste âmbito traria algum relevo, discordância ou compreensão distinta a partir do tema. Aqui, todos dizem praticamente a mesma coisa, concordando entre si e reafirmando a fala alheia. Ora, a compreensão do tema é tão consensual assim?

Outro ponto de destaque diz respeito ao formato do média-metragem. Upa, Neguinho! possui 53 minutos, duração que escapa ao teto máximo permitido ao curta, e ao mínimo exigido de um longa-metragem. Trata-se do escopo mais difícil de inserir em festivais de cinema, e por extensão, também comercialmente, o que diminui a visibilidade deste bom material. Caso estivesse disposto a expandir a visão social, o cineasta certamente obteria um material valioso para converter o resultado num longa.

Ora, é possível sugerir, em oposição, que nenhum média-metragem seja obrigado a alterar seu formato devido às restrições do circuito. O documentário cumpre bem os seus objetivos no tempo proposto, e fornece um retrato satisfatório de seu personagem, além de uma pequena introdução das danças, religiões e da cultura negra. O projeto não se aprofunda, mas jamais aparenta visar um tratado sociológico à altura das falas de Leo. O filme tampouco é obrigado a se estender e se desenvolver. 

No intuito de fornecer um contato inicial com uma cultura que se supõe distante daquela do espectador médio, a projeção terá cumprido o seu papel. Trata-se de um cinema mais valioso pelo humanismo, abraçando os personagens com evidente empatia e respeito, do que complexo em sua compreensão dos quilombos. Isso já é um mérito considerável. 

Upa, Neguinho! (2022)
6
Nota 6/10

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