Regra 34: “A defesa do filme é sobre tesão, e você pode encontrar o tesão de várias formas”

Em 19 de janeiro, os cinemas recebem um dos nossos filmes mais controversos e premiados do último ano: Regra 34, dirigido por Júlia Murat. O drama foi apenas o segundo filme brasileiro da história a vencer o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno, e tem provocado reações fortes por onde passa. Afinal, a história atravessa fortes tabus da contemporaneidade: a autonomia feminina, o sadomasoquismo, e a intervenção do Estado no corpo e no desejo dos indivíduos, além do limite entre prazer e violência.

No centro da jornada se encontra Simone (Sol Miranda), jovem estudante de direito, prestes a concluir a formação para se tornar defensora pública. Enquanto atua em casos relacionados à violência doméstica e conjugal, ganha dinheiro em performances eróticas na Internet, submetendo-se ao prazer de espectadores cada vez mais exigentes e agressivos. Aos poucos, descobre os prazeres do BDSM, da autoasfixiação erótica, da mutilação e automutilação. Os amigos se preocupam com esta aventura possivelmente destrutiva, mas a heroína defende seu comportamento enquanto parte de um direito de escolha.

Até onde ela pode ir? Que direito têm os colegas de impedi-la de se ferir, ou de se expor? A defesa de mulheres espancadas no âmbito profissional contradiz o desejo de Simone em se submeter às vontades de terceiros? Aqui, não existem respostas certas nem erradas. Simone não se arrependerá de suas experiências, nem será descoberta e humilhada pela exposição na Internet, a exemplo de tantos filmes que discutem a exposição íntima nas redes. Mesmo assim, em entrevista com o Meio Amargo, a diretora Júlia Murat confessa que alguns destes conflitos foram cogitados, e mesmo filmados, pela equipe:

“A gente filmou muitos destes ganchos, mas no processo de montagem, foram abandonados. Por exemplo, existia a cena onde o Antônio dizia um absurdo na orelha de Simone. Dizia que queria comer ela de quatro, na sala dele de defensor. A Simone dava um soco na barriga dele. Depois essa cena caiu. Isso é só para exemplificar que, apesar de não ter tantos ganchos dramatúrgicos, ainda assim, o roteiro ainda tinha muitos. A montagem foi um processo de limpeza disso”.

Sol Miranda em Regra 34. Foto: Amina Nogueira.

A complexa identificação com Simone

O resultado é uma obra provocadora, que nem se filia totalmente à heroína, nem a julga moralmente. “Tem pessoas que rompem a identificação com a protagonista desde a primeira cena”, confessa Murat, em referência a uma sequência de masturbação explícita. “Tem gente que rompe na cena final. Mas outros embarcam até na cena final, dizendo que esta vai ser a melhor trepada da vida deles. O nosso desejo era permitir essas várias leituras. Tentamos não moralizar nem o corpo da Simone, nem o filme”.

“O filme procura não moralizar o sexo, nem colocar as coisas em caixinhas”, continua Gabriel Bortolini, diretor assistente e de casting. “No período de montagem, os coprodutores franceses nos disseram que não entendiam a relação de afeto dos personagens. Afinal, uma hora a Simone sai com um, depois sai com a outra, depois os três se pegam… Eles queriam entender como isso funcionava. Regra 34 tenta retirar os tabus, e abordar a sexualidade de outras formas, algo que aprendemos inclusive com a juventude atual”.

Por isso, não teria sentido definir rótulos de orientação sexual. Ainda segundo Bortolini, “Em pleno 2022, esta juventude não pensa apenas em ser gay, ou bi, ou hétero. A defesa do filme é sobre tesão, e você pode encontrar o tesão de várias formas. A gente teve vários debates sobre estas relações, e sempre preferimos não definir nada. O Coiote tem uma relação com a Simone? Não necessariamente. Eles estão explorando sexualmente algo como dois amigos que se permitem viver estas experiências sem grandes tabus. Eles não se autodefinem”.

Regra 34 tenta retirar os tabus, e abordar a sexualidade de outras formas, algo que aprendemos inclusive com a juventude”.

Isabela Mariotto concorda com este ponto de vista. A atriz interpreta Natália, uma especialista em sadomasoquismo responsável, com consentimento e limites bem determinados, e grande amiga de Simone. “Eu nunca tinha parado para pensar nisso, talvez por não ser importante na narrativa, ne, na construção das relações”, confessa. “O foco se encontra na amizade. Discutimos bastante isso nos ensaios. Assistimos a filmes que Júlia e Gabriel separaram para nós, como Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2018), focamos em amizades profundas que passavam às vezes pelo sexo e pelo tesão. O que acontece entre eles é uma consequência da amizade, não necessariamente para explorar a orientação sexual”

No entanto, ela confessa que os possíveis julgamentos às atitudes de Simone são naturais, e fazem parte do jogo com o espectador. “Este lugar é movediço. Tem vezes que a gente torce para a Simone experimentar mais o desejo, e ficamos com raiva das amigas que tentam cerceá-la. Depois eu entendo as amigas e penso: ‘Alguém para essa maluca! Onde ela vai chegar?’. Isso é muito interessante no filme, porque nos leva em lugares para além do sim e do não. Nas nossas vidas, também cruzamos essas dúvidas e incertezas. Então isso é precioso, porque vai na contramão de tantos filmes em que já temos uma simpatia desde o princípio com o herói. Gosto de quando essas questões tocam o direito e o papel do Estado em relação à violência. Às vezes nós assumimos este papel controlador e delimitador do Estado. Mas por que eu saberia o que é melhor para outra pessoa, mais do que ela mesma?”.

Sol Miranda em Regra 34. Foto: Amina Nogueira.

Violência em corpos negros

Para além dos temas da sexualidade feminina, do prazer e do âmbito da independência individual perante o Estado, havia outra questão importante: a violência praticada, de modo consentido, ou não, contra corpos negros. Sol Miranda e Lucas Andrade, que interpreta Coiote, são atores negros, e ambos representam na trama os personagens mais abertos às experiências de sadomadoquismo.

“Desde o momento em que cheguei no filme, a Júlia sempre se mostrou muito aberta ao diálogo, à construção. Eu tinha os direcionamentos do que ela queria para a personagem. Sabia onde a gente deveria chegar, mas isso foi mudando”, explica Sol Miranda. “Enquanto corpos negros, a gente foi levando questionamentos à sala de ensaio, e a Júlia queria nos ouvir. O espaço foi confiável a ponto de a gente colocar nossas fragilidades e questões pessoais, para ajudar na construção do projeto”.

As asfixia com o saco plástico era algo muito difícil para Sol, mas ela me respondeu: ‘Júlia, os meninos são assassinados com sacos plásticos na favela’. Aí eu compreendi.

“A gente foi se conhecendo nesse processo, sendo atravessados pelas relações interraciais”, ela continua. “O Lucas Andrade não queria que o personagem dele se colocasse apenas de modo ativo em relação ao corpo da Simone. Era importante que ele também se colocasse à disposição do desejo dela. Enquanto homem negro, ele precisava estar em colaboração com a Simone, junto com ela. Foi bonito ver como Júlia e Gabriel conduziram isso, transformando e lapidando melhor os personagens. Foi um processo bonito e importante. No Brasil que a gente vive, é impossível não ter mudanças quando criamos um espaço destes, de abertura. Mudamos conceitos e preconceitos”

Murat confessa ter alterado as cenas a partir de “milhões de diálogos” com os atores: “Lembrei de uma cena que ocorreu no processo, e exemplifica isso. Quando fomos ensaiar a asfixia com o saco plástico, a Sol estava muito incomodada. Ela dizia que não dava, não conseguia fazer. As asfixia com o saco plástico era algo muito difícil para ela, mas eu tinha dificuldade de entender o porquê. Ela me respondeu: ‘Júlia, os meninos são assassinados com sacos plásticos na favela’. Aí eu compreendi no que estava tocando. Isso acontecia o tempo todo. A gente parava e pensava: e agora, como lidamos com esse problema?”.

Isabela Mariotto, Lucas Andrade, Sol Miranda e Lorena Comparato em Regra 34. Foto: Amina Nogueira.

Liberdade individual num Brasil em crise

A atualidade destes temas e debates soa central na recepção ao filme. Para os autores, as discussões de Regra 34 soam tão propícias ao governo progressista que acaba de assumir quanto durante o governo autoritário que controlou o país pelos últimos quatro anos:

“Esse filme passou por muitas fases, desde a decisão de produzir até agora. O projeto começou antes do golpe, passou por Bolsonaro, e então, passou pela nova esperança desse governo, e pela invasão ao Planalto”, lembra Mariotto. “Tivemos inúmeras estreias e sessões em momentos turbulentos, como às vésperas do segundo turno das eleições. Toda vez que vejo o filme, ele se reatualiza. Ele continua sendo interessante, instigante, dialogando com o aqui e agora — qualquer que ele seja. É uma discussão sobre a autonomia dos corpos, e sobre explorar seu desejo como te convém. Também é um filme sobre liberdade. É fundamental que as pessoas assistam a ele agora, e sempre”.

“A liberdade individual é complexa. Não estamos sozinhos no mundo”, completa Bortolini. “A Simone é atravessada pelos amigos, que se preocupam com ela. O momento de falar sobre esta liberdade é fundamental, e mesmo sobre falar em geral, de se comunicar, enquanto população. Temos pouca escuta para entender que existem várias liberdades individuais distintas dentro de uma sociedade. Como vivemos todos em respeito mútuo?”.

O filme coloca o sexo como algo a ser debatido, explorado. Por que não falo sobre sexo com meus amigos, na faculdade, com meus pais? Por que somos tão travados?

O diretor assistente opina sobre a reverberação do projeto junto à sociedade atual: “O elemento mais forte do filme é a capacidade de diálogo que ele constrói, seja entre os próprios personagens, seja conosco, enquanto assistimos. Ele coloca o sexo como algo a ser debatido, explorado. Por que não falo sobre sexo com meus amigos, na faculdade, com meus pais? Por que somos tão travados? Nesta época, em particular, precisamos de mais comunicação. Você sai de Regra 34 afetado por isso, querendo conversar com as pessoas”.

“É uma questão de direito individual”, ele conclui. “O filme permite esta experiência louca de questionar nossos próprios moralismos. Olhamos para estas relações de afeto: eles são amigos; não tem construção romântica ali. Pode parecer muito contraditório para a gente assistir a esta proposta. Na nossa experiência, as pessoas saem da sessão com um sentimento muito confuso, tentando entender dentro delas mesmas o que sentiram”

Para Sol Miranda, a temática do sexo na Internet torna o projeto particularmente acessível ao público: “Muitas pessoas jovens se aproximam do filme por causa dessa relação com a Internet. No festival em Nantes, os jovens lotaram a sessão, interessados na ideia da jovem que fazia performances na Internet. Isso vale especialmente para agora, quando temos OnlyFans e outros sites, e discutimos a remuneração de mulheres que lidam com o corpo. Ou seja, o filme levanta outros debates sobre estes lugares. Quais são os movimentos de apropriação, de atualização destes trabalhos?”

A cineasta Júlia Murat com o Leopardo de Ouro por Regra 34

Sexo, nudez e consentimento

A temática da Internet conduz o questionamento às decisões artísticas acerca das imagens de sexo e nudez em Regra 34. Durante a exibição do filme na Mostra de Cinema de Gostoso, o desconforto era palpável por parte dos espectadores locais, que depois julgavam qual cena era “necessária” ou “desnecessária”.

“Uma das coisas mais difíceis para a gente, tecnicamente, foram as cenas online”, admite a diretora. “Tudo o que eu queria era dar um realismo às performances online que a gente vê nestes sites. O Gabriel Bortoloni criou oito personagens com os quais a Simone deveria se relacionar, e enquanto ela fazia a performance, atuando, o Gabriel atuava do outro lado da linha, num computador, nestes oito personagens ao mesmo tempo. Isso dava input pra ela. Depois disso, na edição, com a minha ajuda e de um designer, ele sentou, reescreveu essas conversas e desenvolveu dez mil outros personagens. Ficamos pensando em gifs, na tecnologia destas cenas”.

A imagem da nudez foi um grande trabalho nosso. A gente entendia o peso dos temas que estava abordando, mas em nenhum momento pensamos numa imagem para chocar”.

No entanto, é fundamental separar realismo de exploração gratuita dos corpos, segundo Bortolini. “A imagem da nudez foi um grande trabalho nosso. Fizemos uma pesquisa sobre imagens do sexo e suas representações no cinema, desde os filmes mais expositivos aos mais românticos. Entendemos que o importante era não manipular a imagem, nem fingir que as coisas eram diferentes. Era preciso mostrar as coisas como são. A gente entendia o peso dos temas que estava abordando, mas em nenhum momento pensamos numa imagem para chocar”.

“Tudo foi feito dentro da própria narrativa, da própria dramaturgia, e dos processos com o elenco, quando vimos onde podíamos chegar”, ele prossegue. “As cenas tinham um desenho prévio, mas muito era criado no momento, naquilo que cada ator se permitia fazer. Esta é a lógica do BDSM: o consentimento, a conversa permanente. A gente sempre perguntava: ‘Está legal para você? Como fazemos? Pareceu estranho?’ Às vezes, a imagem é mais forte do que a gente, e ela gera sentimentos e sensações diferentes em cada pessoa. Eu pessoalmente não me choco com o filme, e até sinto falta de coisas que eu sei que caíram na montagem. Mas entendo que cada um traça seu limite de modo diferente”, finaliza.

Regra 34 é distribuído no circuito comercial brasileiro pela Imovision.

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