“Temos que superar a ideia de que filmes precisam ser divertidos ou intelectuais, nunca os dois juntos”, defende Sonja Heiss

No Festival de Berlim, a diretora alemã Sonja Heiss apresenta uma comédia dramática bastante particular. Quando Voltará a Ser como Nunca Foi é baseado na autobiografia Quando Finalmente Voltará a Ser Como Nunca Foi, de Joachim Meyerhoff. O autor relembra sua infância particular, crescendo num hospital psiquiátrico, já que seu pai era diretor da instituição e a residência da família se encontrava no estabelecimento. Convivendo diariamente com pessoas deficientes, deprimidas ou psicóticas, o garoto desenvolveu uma visão particular sobre a vida, a morte e a saúde mental.

Esta experiência é narrada num filme tão divertido quanto doloroso, onde o humor jamais é extraído a partir dos personagens enfermos, mas pela sátira do funcionamento do mundo dito “normal”. A cineasta demonstra grande respeito pelos trabalhadores e pelos internos, enquanto acena à fantasia para representar experiências de vida diferentes do indivíduo comum. Leia a crítica.

O Meio Amargo conversou com Heiss a respeito do projeto:

Você afirma ter se encantado com o livro, mas o que a levou a acreditar que renderia um bom filme?

Uma primeira coisa é o mundo particular em que ele ocorre. É um universo muito interessante, que eu não encontro em filmes modernos com frequência. Além disso, existe muito humor e muita profundidade, ou seja, muita emoção. O humor, neste caso, é baseado na tragédia, nas dificuldades da vida. Mas eu subestimei o quão anedótico era o romance. Então demorei bastante tempo para escrever o roteiro!

Isso depende muito do tom, de fato. Você poderia ter feito uma comédia ainda mais forte, se quisesse, a partir do mesmo material.

Estava claro para mim que eu não poderia exagerar demais na comédia, senão, quando ocorrem as tragédias, o espectador não conseguiria acessar estas emoções. Para mim, era importante que o espectador ficasse comovido com os acontecimentos. Por isso, era evidente que havia espaço para o humor, mas esta não poderia ser uma típica comédia alemã — eu nem mesmo gosto desse tipo de filmes. Eu sempre trabalho este tom nos meus filmes e nos meus livros, porque também sou escritora. Além disso, o mundo onde se situa a trama não permite exagerar demais. Era fundamental para mim que as pessoas com deficiências, que participam do filme, nunca se tornassem motivo de riso.

Era evidente que havia espaço para o humor, mas esta não poderia ser uma típica comédia alemã — eu nem mesmo gosto desse tipo de filmes.

Fiquei muito contente de ver atores com deficiências reais interpretando estes personagens.

Na minha opinião, é impossível para atores sem deficiência interpretarem a vivência de pessoas deficientes. Isso nem teria sentido, até porque tudo o que pode ser interpretado, por definição, constitui um clichê. Na maior parte dos filmes, pessoas com deficiência são mostradas como clichês. Eu queria mostrar que existe uma diversidade tão grande entre as PCD do que nas pessoas isentas de deficiências. São como todos os outros.

O filme nasceu após longas negociações com Joachim Meyerhoff para liberar os direitos do romance. Houve alguma condição imposta, de ordem de conteúdo?

No começo, ele conhecia os meus filmes e gostava deles, então sabia que a história dele estaria em boas mãos. Ao mesmo tempo, ele quis esperar pelo primeiro tratamento do roteiro para opinar de fato. Não foi fácil, porque esta é a vida dele de verdade. Mesmo assim, precisamos alterar algumas coisas, senão o material não se tornaria um filme muito bom. Foi difícil para ele, mas a certa altura, ele apenas consentiu.

Meyerhoff não foi parte do processo, nem participou dos cortes na montagem?

Não. Ele leu versões do roteiro, deu sugestões. Depois, mostramos vídeos dos atores que cogitamos escalar durante a seleção do elenco, sobretudo para os personagens principais. Ele gostou bastante de quem escolhemos. De vez em quando, eu mandava uma fotografia do set, para ele ter uma ideia do andamento. Mas ele não viu nada do conteúdo, até o filme estar finalizado. 

Como ele reagiu?

Felizmente, ele adorou. Ficou muito feliz, a aceitou participar da apresentação do filme, fazendo entrevistas, por exemplo. A família dele também assistiu. Fizemos uma exibição para os familiares quando a mãe dele veio a Berlim para o aniversário de 80 anos. Foi muito emotivo para todos eles.

Nunca me senti obrigada a contar a história exatamente como aconteceu. Até porque o filme é um pouco surreal, e às vezes se parece com um conto de fadas.

O retrato da morte é bastante complexo. Essa me pareceu uma bela comédia sobre a morte.

Eu sempre soube que, mais perto do fim, a história se tornaria mais dramática e emotiva. Esse já era o percurso de vida dele, descrito no livro. A trajetória começa de maneira bem engraçada, até diversas mortes tornarem o percurso mais grave. Conforme eu escrevia, percebi que a experiência estava se tornando amarga demais. Por isso, desenvolvi a cena com os pacientes, durante a festa de aniversário, para que os internos falassem sobre a morte com suas próprias palavras. É interessante, porque eles possuem uma visão totalmente diferente. Eles não pareciam assustados com isso, e abordavam com naturalidade: “Quando o professor morre, chega um professor diferente”. É um final triste, mas eu tentava encontrar a leveza.

Como trabalhou com os atores principais? Queria que eles tivessem o romance como base, ou se concentrassem apenas no roteiro?

Acho que todos eles leram o romance. Mesmo assim, redefinimos bastante cada personagem ao longo dos ensaios. Nunca tive a pretensão de que eles garotos imitassem Joachim Meyerhoff, ou algo do tipo. O roteiro tinha suas diferenças em relação ao romance, e os atores precisavam de espaço para dar vida a esta trama. Nunca pensei me senti obrigada a contar a história exatamente como aconteceu. Até porque o filme é um pouco surreal, e às vezes se parece com um conto de fadas. Ele é meio maluco, no bom sentido da coisa.

Você inclusive termina o filme de maneira fantástica, inesperada — sem entrar em detalhes, claro.

Esta foi uma metáfora: é quando as coisas finalmente se tornam como nunca foram antes. O romance tem um final bastante duro, e decidimos que o filme não precisaria se encerrar desta maneira. Queríamos terminar nossa história antes, porque era possível deduzir o que aconteceria depois, e isso já era triste o bastante. Por isso, encontrei esta imagem na minha cabeça bem cedo no processo, para representar algo se tornando como nunca foi antes.

Instituições psiquiátricas sofreram grandes transformações entre os anos 1970 e o final da trama, nos anos 1990. Era importante ser fiel aos dados históricos?

Sim, com certeza. Pensamos na direção de arte, nos objetos, que mudavam em cada época. Mas ao mesmo tempo, estes espaços são observados pela perspectiva infantil de Joachim. Para ele, estes locais eram como grandes parques de diversão. Sei que os tratamentos mudaram muito, mas quando Joachim era menino, ele não esteve realmente perto da parte mais intensa da psiquiatria. Preferi mostrar estas instituições enquanto um lugar amado por ele.

Os hospitais psiquiátricos precisam de muito mais dinheiro para funcionar corretamente.

Como este retrato dos hospitais psiquiátricos se relaciona com as instituições na Alemanha de hoje?

Existe uma cena em que Richard explica ao político todas as mudanças que ele gostaria de ver ali. Este foi o tempo em que o sistema se transformou bastante, e os médicos e profissionais de saúde pararam de dar doses gigantescas de medicamento para apenas sedar essas pessoas. Desde então, a compreensão do sistema mudou, mas a base da estrutura é semelhante. Eu visitei muitos locais contemporâneos, com abordagens bastante modernas, mas sei que esses lugares têm pouco dinheiro para se desenvolver. Era difícil, mesmo hoje, encarar a aparência e o funcionamento destes locais.

O Brasil também passa por grandes debates sobre a saúde mental. Políticos conservadores desejam ver todos os internos presos e medicados, com medo de representarem um perigo à sociedade.

Esse pensamento é uma falácia. Os hospitais psiquiátricos possuem alas específicas para indivíduos com comportamento psicótico profundo, ou aqueles com potencial de tirar as próprias vidas. Eu também passei muitas horas nestes locais, e sempre saía bastante afetada depois de algumas horas. Era intenso. Mas o mais interessante era conversar com os médicos e perguntar como eram capazes de lidar com estas situações todos os dias. Eles eram como o professor do filme, dizendo: “Eu amo esse trabalho! Sou fascinado pelas maravilhas do cérebro humano!”. Mas exceto pelos casos específicos de pessoas em psicose profunda ou depressão, não vejo motivos para mantê-los trancados. É claro que este sistema precisa de muito mais dinheiro para funcionar corretamente. Quando você está debilitado ou deprimido, e fica nestes locais precários, com quartos feios em más condições, é ainda mais difícil se recuperar.

No Brasil, falamos bastante sobre “filmes do meio”, entre as comédias populares e os filmes herméticos. Eles seriam capazes de unir crítica e público, e corresponderiam a uma parte fundamental da indústria. O seu filme parece ser um exemplar perfeito deste segmento.

Na Alemanha, também chamamos essas produções de crossovers, ou ainda de smarthouse — um termo de que eu gosto muito. Não é fácil produzir obras assim por aqui. Nossas obras são bem divididas entre entretenimento ou intelectuais. As pessoas começam a perceber, aqui também, que é preciso unir as duas pontas. Gostei de ver, em Berlim, que as pessoas sem o costume de assistir a filmes de arte gostaram bastante de When Will It Be Again Like It Never Was Before. Esses filmes funcionam bem, mas a indústria acaba nos dividindo, levando aos extremos. O lançamento comercial na Alemanha vai acontecer em 22 ou 23 de fevereiro, então estou com expectativas enormes. Toni Erdmann foi um belo exemplo de smarthouse, então espero que o filme funcione neste sentido também. Ainda temos que superar a ideia de que filmes precisam ser divertidos ou intelectuais, nunca os dois juntos.

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