“Mas o que ele ganha fazendo esse filme?”

O cinema autoral visto por não-cinéfilos

Em visita à casa dos meus pais, decidi assistir a um filme do Festival É Tudo Verdade, em versão online, enquanto ambos dormiam pela manhã. Escolhi Sinfonia de um Homem Comum (2022), documentário de José Joffily a respeito de José Maurício Bustani, diplomata e pianista, recordando a crise política travada contra os Estados Unidos durante a invasão ao Iraque. A expectativa era alta, devido à paixão que tinha guardado pelo belíssimo Caminho de Volta (2015), de Joffily.

Conforme a sessão ocorria, pai e mãe foram acordando e vieram acompanhar, com curiosidade, o que eu estava vendo na televisão da sala. Nenhum dos dois nutre afeto particular pelo cinema. Assistem a filmes com frequência, porém de maneira descompromissada, prestando pouca atenção à narrativa. Por isso, meu pai ficou surpreso ao escutar frases em português vindo da televisão: “Ah, é brasileiro?”. Expliquei que sim. Era um documentário do Festival É Tudo Verdade.

Acompanhou alguns minutos. Como a narrativa saltava da apresentação de piano à diplomacia, questionou: “Mas o que a música tem a ver com o Iraque?”. Respondi que o protagonista tinha se dedicado tanto à diplomacia quanto à música. Meu pai deve ter permanecido uns quinze minutos em frente ao televisor, observando o rosto de Bustani e as imagens de arquivo de George W. Bush alegando a existência de armas de destruição em massa sob o regime Saddam Hussein. Ele me questionou quem tinha feito esse filme. Afirmei que era um diretor de quem eu gostava bastante.

Sinfonia de um Homem Comum

“Mas o que ele ganha fazendo esse filme?”, me indagou então, incrédulo. “Isso não passa no cinema, né? Pra quê, então?”. Fiquei surpreso com a interrogação. Já tinha escutado argumentos para descredibilizar o cinema nacional diversas vezes, mas jamais com tamanha naturalidade. A questão parecia real, intencionada, nada retórica. Ele desejava uma resposta. Pego de supetão, apelei a um argumento de autoridade: disse que o filme tinha sido selecionado para um dos festivais de documentários mais importantes do mundo, representando um dos sete ou oito longas-metragens escolhidos para sua mostra competitiva entre mais de cem avaliados. Não sei se os números estão corretos.

Ele se mostrou incrédulo com os dados. Passou mais alguns segundos entretido pela sessão, até ver na tela o rosto do ex-presidente Lula, tema tabu em casa, que provocou nele uma irritação instantânea. Então, levantou-se e saiu do cômodo com rapidez. Segui acompanhando o filme, agora um tanto desconcentrado, até a chegada da mãe, que tinha acordado e também se dirigido à luminosidade e ao som emanados da tela. (É interessante o poder de atração automático de um televisor. Viramos moscas em busca da luz). Assistiu a um trecho comigo. Perguntou o tema; expliquei. Ela disparou por sua vez, perplexa: “Mas por que ele decidiu fazer um filme sobre esse homem?”. Afinal, Bustani não lhe parecia um sujeito importante.

Ele desejava uma resposta. Pego de supetão, apelei a um argumento de autoridade.

Aí, já me parecia provocação. Não dela em particular, nem dele, mas dos cosmos, do acaso, de alguém. Alguém tinha que estar de sacanagem comigo. Sugeri que Bustani era alguém importante, apesar de pouco conhecido. (Estaria me contradizendo?). Ela consentiu discretamente, pouco satisfeita com os argumentos. Poucos minutos depois, saiu da sala. A partir deste instante, não conseguia deixar de pensar nos motivos pelos quais esse filme teria um sentido tão improvável aos olhos de ambos. Longe da raiva, manifestavam um desprezo desafetado pelo conteúdo. Apenas não viam razão de existir naquele filme. Ora, por que se fazem os filmes? Por que se escolhe um tema, ao invés de outro?

Isso me obrigou a dar alguns passos atrás. Quando críticos de cinema abordam a rejeição ao cinema nacional e nossa típica síndrome de vira-latas, costumamos nos voltar a casos exagerados e, portanto, exemplares: o governo Bolsonaro e suas tentativas de censura; os aficionados pela grande máquina norte-americana, que consomem apenas blockbusters de super-heróis, com muitos efeitos visuais; aqueles contaminados por um imaginário depreciativo, para quem todo produto brasileiro seria mal-feito, propenso à putaria e aos palavrões. Sabemos que, no fundo, estas pessoas desejam profundamente o sexo e a profanação que condenam, mas este seria tema para outro texto.

O diretor José Joffily. Foto: Zeca Guimarães

De qualquer modo, esquecemos de incluir nesta conta aqueles indivíduos que simplesmente não enxergam um motivo para se produzir, distribuir, exibir e prestigiar o cinema nacional. O fato de me verem dedicando tempo a um documentário soava exótico, uma excentricidade do filho que adora as artes. Era tão estranho quanto se eu estivesse observando com atenção os detalhes de uma parede branca — nada ofensivo, porém inútil em sua concepção. Eu podia ler, em suas falas, questionamentos do tipo: “Por que o diretor não conta uma grande história de amor? Um episódio chocante de guerras, sequestros, busca policial?”. Por que, podendo ser grande, o cinema escolheria ser pequeno?

A frase de meu pai ecoou de maneira especial. “Mas o que ele ganha fazendo esse filme?”. Talvez estivesse pensando em José Joffily, diretor, entretanto a dúvida se estende a Isabel Joffily, Pedro Rossi, Jordana Berg, David Meyer, Felippe Mussel, Bernardo Adeodato e mais inúmeros artistas envolvidos no processo de criação. A frase se presta a inúmeros significados, é claro. Apenas alguns vieram à mente, a princípio. Pensei nos ganhos salariais: que tipo de retorno  financeiro ele teria com esta empreitada?

Que recompensa emocional, pessoal e de reconhecimento social teria um artista dedicado a contar a história de um diplomata do governo FHC?

Neste caso, imagino que sejam poucos. Ninguém enriquece, até onde se saiba, realizando documentários neste país. Também duvido que a intenção tenha sido esta: faturar alto com as exibições do filme. Em contrapartida, imagino que todos fiquem contentes com uma remuneração justa por seu trabalho (cabendo a cada um determinar o valor justo). Afinal, cultura não se faz de boa vontade e boas ideias e, além disso, anos de pesquisa e esforços foram concentrados nesta produção. (Completo e contesto meu próprio raciocínio: mesmo que tivesse sido feito rapidamente, ainda teria sido trabalho, e ainda mereceria uma digna remuneração).

Ora, o retorno exigido por meu pai pode ser simbólico, da ordem do status: que recompensa emocional, pessoal e de reconhecimento social teria um artista dedicado a contar a história de um diplomata do governo FHC? Este aspecto toca num ponto mais profundo, sobre a razão de existir da própria arte. Meu pai pressupõe que a arte deve ter um público cativo: produz-se para uma demanda específica, um consumidor sedento por este produto. Por desconhecer o público em questão para a diplomacia brasileira do início do século XXI, duvida que tal fábrica possa estar em funcionamento.

Festival É Tudo Verdade

O pensamento não precisa ser tão pragmático, em se tratando de cultura e de arte. Até onde se saiba, não havia manifestações acaloradas pedindo encarecidamente por um filme sobre José Bustani. Aqui, oferta e demanda se invertem: oferece-se uma reflexão que os espectadores talvez nem sequer soubessem que queriam. Não se produz especialmente para uma demanda, mas para a arte, para o mundo. Expandindo o conceito, faz-se filmes para a posteridade, para o registro de fatos e ideias, para participar à disputa de narrativas dos nossos tempos. Não é fascinante o fato de que um tópico possa ser interessantíssimo a uma pessoa, e desinteressante a outra?

Além disso, Sinfonia de um Homem Comum ultrapassa o retrato de um tema. É comum que se enxergue numa produção apenas uma temática — um projeto sobre Bustani, no caso. Entretanto, o documentário vai além. Ele possui imagens, sons, articulações e estímulos próprios. Combina-se a música clássica com imagens de cadáveres em campos de guerra. Cenas íntimas do homem em sua casa, e outras, públicas, enfrentando um voto orquestrado pelos Estados Unidos. Há tensão e relaxamento, belezas de imersão junto a outras, de distanciamento. 

Incomoda a ideia de assistir a um filme útil, que sirva a um propósito específico.

De modo geral, incomoda a ideia de assistir a um filme útil, que sirva a um propósito específico. Pai e mãe se indagavam quanto à vontade prévia do público em assistir a um retrato da diplomacia brasileira de vinte anos atrás. Posso dizer que, por mim, nunca tive um interesse específico neste tema. Mas não era isso que me atraía na sessão. Este podia ser um documentário sobre o inventor da palha de aço, sobre o sujeito que disseminou o reggaeton no Brasil — eu veria do mesmo jeito. Há lindos filmes com saquinhos de plástico voando ao vento, e péssimas histórias de amor e bravura. O tema é secundário.

Falta abertura de parte do público à arte enquanto estética, experiência — uma alfabetização à linguagem audiovisual, o que incluiria a formação do senso crítico tão importante em tempo de fake news. Certo, há desprezos múltiplos envolvidos neste processo: contra documentários, julgados inferiores às ficções; contra o cinema nacional, visto como pior que o estrangeiro; contra um tema não-espetacular. Em paralelo, existe um desprezo pela própria experiência artística — se o filme não serve para me distrair, que finalidade teria então? Fico pensando, depois deste caso, em alguma alternativa para sensibilizar, ou expandir a estas pessoas os prazeres de que desfruto tanto, e que também poderiam ser acessíveis aos seus olhos — caso esta seja, se fato, parte da minha função de crítico e cinéfilo.

Sinfonia de um Homem Comum

Deveria insistir numa pedagogia da imagem ou então me deixar vencer pelo cansaço, compreender que o cinema seria um prazer meu, e de um grupo restrito? Há uma contradição fundamental no ato de elaborar um cinema capaz de chegar a um público amplo (não existe nada hermético em Sinfonia de um Homem Comum), que ficará entretanto restrito aos olhos de um nicho já propenso a abraçar estas ideias, imagens e sons. A indagação seria política: como dialogar com um campo que nos repudia, ou no mínimo nos desconsidera? Como trazê-los para o nosso lado, sem que esta ideia de pregação e conversão se aproxime de uma catequese?

Termino a sessão sem respostas. Aprendi muito sobre Bustani, a política brasileira, a diplomacia. Isso me permitiu estabelecer paralelos com a catastrófica política externa do atual governo, indagar as consequências da produção em tempos de Covid (a obra foi realizada durante a pandemia), traçar paralelos com outras iniciativas de Joffily. A experiência me alimentou, estimulou a reflexão. Possibilitou, entre outros, este artigo. Mas às vezes queremos compartilhar as belezas que chegam aos nossos olhos com os olhos dos outros. Enxergamos, a partir das mesmas imagens e sons, mundos totalmente distintos. Há centenas de sessões de cinema diferentes para as centenas de espectadores de uma única projeção. Isso é fascinante, mágico e assustador em igual medida.

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