Noites de Paris: “Charlotte Gainsbourg combina a fragilidade com uma força centralizadora”, defende Mikhaël Hers

A partir de 20 de outubro, os cinemas brasileiros recebem o drama Noites de Paris (2022), dirigido por Mikhaël Hers. O cineasta, conhecido pelos belos dramas Aquele Sentimento do Verão (2015) e Amanda (2018), traz uma nova histórica melancólica, exibida no prestigioso Festival de Berlim. No centro da trama está Elisabeth (Charlotte Gainsbourg), uma mulher vivendo nos bairros populares de Paris nos anos 1980, e lidando com a partida recente do marido, que deixou a família. Ela precisa, pela primeira vez, descobrir como sustentar a si mesma e aos dois filhos adolescentes, enquanto se reconstrói do fim do relacionamento.

Duas descobertas ajudam nesse processo e transformação: primeiro, o emprego encontrado numa emissão noturna de rádio, “Os Passageiros da Noite”, onde pessoas compartilham suas dores com os ouvintes, e depois, o encontro com Talulah (Noée Abita), jovem dependente de drogas, que se aproxima da família de Elisabeth e a transforma. O filme foi nosso favorito na competição de Berlim este ano, provando o talento raro do cineasta para este tipo de drama intimista e respeitoso, sem apelar ao sentimentalismo.

O Meio Amargo conversou em exclusividade com o cineasta Mikhaël Hers a respeito do projeto:

Por que escolheu situar esta história nos anos 1980?

Este foi o período da perda da minha infância e da minha adolescência. Este foi o ponto de partida do filme, minha inspiração inicial. Isso pode parecer um pouco abstrato, mas a ideia era essa: retornar aos anos da minha infância e capturar as sensações, as sonoridades e as cores que me inspiravam na época. Na França, diz-se que nós pertencemos ao nosso país como pertencemos à nossa infância. Eu acredito profundamente nisso. Eu não tinha uma motivação nostálgica, apenas uma lembrança melancólica, uma vontade de revisitar este período face ao tempo presente. Foi a minha pulsão de partida.

É interessante ver uma parte de Paris pouco habitual nos cinemas, marcada por torres gigantescas no subúrbio. O que este espaço evoca para você? É algo quase opressor.

Esse também foi o cenário da minha infância, que sempre me inspirou muito. Eu não considero opressor, pelo contrário. Cinematograficamente, é algo muito inspirador do ponto de vista cinematográfico. Diversas dimensões convivem lado a lado neste local. Existem as torres gigantescas que foram construídas nos anos 1970. Existe uma parte mais residencial, perto do rio Sena, e existe toda a periferia com sua natureza verde, que se admira à distância. Isso constrói uma geografia particular. É uma lembrança do que vivi na infância, no bairro de Beaugrenelle, em Paris. Para mergulhar nas minhas memórias, era fundamental revisitar isso. Em paralelo, este é um bairro pouco filmado. Gosto de explorar novos territórios, ao invés de filmar sempre as mesmas partes da cidade.

Nós pertencemos ao nosso país como pertencemos à nossa infância. Eu acredito profundamente nisso.

Por que decidiu combinar filmagens em 16mm com o digital, em texturas completamente diferentes?

Esta foi uma escolha que fizemos desde o princípio. Como se trata de um filme de época, existe a necessidade de uma reconstituição. Mas sempre achei um tanto artificiais estas reconstituições de época, elas soam rígidas, posadas demais. Como o principal para mim eram as sensações e impressões, a melhor maneira de criar esta atmosfera, ao invés de uma reconstituição exuberante de figurinos e cenários, seria recriar a ambientação através dos diferentes estilos de imagem. Isso permitiria ao espectador compreender o fluxo e as texturas da época. Utilizamos o digital, mas trabalhamos para produzir uma granulação forte nele. Também aproveitamos os materiais de arquivo da época, em 16mm. Filmamos uma parte em Super-16, nas cenas externas. Houve mesmo uma parte em Super8. Acredito que a conjunção de todos estes registros ajude o espectador a mergulhar na época.

Depois de Aquele Sentimento de Verão e Amanda, começo a associar o seu trabalho a esta melancolia reinante, através de várias texturas de imagem.

O cinema em 16mm, com este formato particular e uma textura bastante granulada e imperfeita, representa para mim a ficção. Cresci com o surgimento do vídeo. Eu assistia às reportagens, às gravações da atualidade em vídeo, mas para mim, o cinema era diferente. Além disso, gosto da ideia que a imagem seja imperfeita. É como se pudéssemos tocá-la, senti-la, ao contrário da imagem de alta definição. Acredito que o sentimento seja representado de maneira muito mais expressiva por este volume do que por uma imagem digital, nítida demais.

Muitos diretores reencontram atualmente o 16mm enquanto resposta política e artística a esta nitidez exagerada dos filmes feitos para o streaming.

É uma possibilidade. Além disso, a película é belíssima, pelo que traz em termos de cores, de movimentos. É outra forma de cinema. Talvez seja uma reação, de verdade, como este apego de tantas pessoas hoje em dia pelo vinil, em oposição à música digital. É a necessidade do apego ao material. Compreendemos a matéria, entendemos como uma película é formada, como as imagens reagem ali, mas não entendemos exatamente a combinação de zeros e uns da imagem digital. A agulha riscando o disco e produzindo música é algo muito mais palpável do que o som produzido pelo formato digital.

A película é belíssima, pelo que traz em termos de cores, de movimentos. É outra forma de cinema.

Charlotte Gainsbourg tem um estilo de atuação doce, tanto no corpo quanto na voz. O que levou à escolha dela para o papel principal?

Nós dois somos muito introvertidos, muito tímidos. Então o encontro aconteceu de maneira natural, simples, sem precisar de muita conversa. Ela entendeu de imediato esta personagem, que precisava ser ambígua: por um lado, Elisabeth é cheia de fragilidade, de introversão, por outro lado, ela tem uma força centralizadora, além da audácia. Charlotte Gainsbourg possui todas essas características dentro dela: ela é um centro de gravidade. Ela é assim, ou pelo menos, esta é a maneira como eu sempre a vi. Charlotte tem essa ambivalência dentro dela, esta dimensão. As coisas aconteceram naturalmente, quase por milagre. A gente se compreendeu sem esforços. 

Você é um diretor mais próximo do controle da mise en scène, das falas e dos atores, ou permite incorporar os imprevistos surgidos durante o processo?

O roteiro é respeitado. Não existe nenhuma improvisação, no sentido estrito do termo. Mas também deixo os atores brincarem com o texto. Nunca fui o tipo de diretor que exige que as palavras sejam respeitadas com exatidão; isso não me interessa. Para mim, o mais importante é que o ator atinja um realismo, então se ele precisar trocar alguma palavra para trazer um toque de realismo, e se eu acreditar mais no que ele propõe do que naquilo que eu tinha escrito, vou com a versão dele. O roteiro é a base sólida, mas quero que os atores se sintam confortáveis com aquilo que os personagens dizem.

As emissões de rádio não possuem o mesmo peso hoje como tinham na época, e no filme. Este programa noturno de rádio ajuda a marcar a diferença de épocas.

Essas emissões noturnas de rádio eram muito famosas durante a minha infância. As pessoas revelavam segredos, desvendavam uma parte de sua intimidade, uma parte delas mesmas. É muito estimulante para a criatividade, ter acesso a parte de uma vida em questão de minutos. Imaginei que outras pessoas, em outras cidades, também escutavam estas emissões. Isso formava uma comunhão secreta, de pessoas escutando a mesma coisa, ao mesmo tempo, juntas e separadas. Hoje, com o podcast e os rádios digitais, a comunicação é mais atomizada — e também tem as suas vantagens, é claro. Mas esta dimensão de compartilhar um instante me interessa no rádio de décadas atrás. Não é nostalgia, mas considero que esta forma de rádio era determinante na maneira de se comunicar naquela época.

Nas emissões noturnas de rádio, as pessoas revelavam segredos, desvendavam uma parte de sua intimidade, uma parte delas mesmas.

Emmanuelle Béart tem um papel forte, agressivo, quase o oposto de Charlotte Gainsbourg.

É isso, mas gosto que as configurações se invertam. A personagem de Charlotte Gainsbourg inspira a impressão inicial de fragilidade, mas descobrimos que ela é muito forte. Já a personagem de Emmanuelle Béart possui este lado bruto, até um pouco masculino, mas aos poucos descobrimos que ela esconde um lado falho, mais sensível. Os dois lados possuem ambivalências, e as duas se encontram neste jogo de espelhos invertidos. 

A presença de uma adolescente dependente de drogas evoca um imaginário de decadência que não corresponde em nada a Noites de Paris. Se não me engano, o filme sequer menciona qual droga ela consome.

É verdade. Esta é uma dimensão à parte. Talulah é o coração sombrio do filme, ela traz uma dimensão romanesca à trama. Algumas pessoas me disseram que talvez fosse difícil acreditar nela, porque nunca a vemos devastada, coberta de picadas no braço, nada do tipo. Para alguns, a ausência destes elementos torna a adolescente idealizada. Mas não acho que este seja um filme naturalista, então Talulah corresponde a uma personagem romanesca. 

Noites de Paris foi exibido na competição oficial do Festival de Berlim. Dentro de uma grande indústria de cinema, como a francesa, que papel desempenham estes festivais internacionais na atenção conferida ao filme, e no caminho de distribuição e exibição?

É sempre algo benéfico, claro. Mas, na verdade, isso depende, não existe uma regra clara: não é porque seu filme foi selecionado, que você vai com certeza ter uma grande atenção e espaço nos cinemas. Neste caso específico, eu fiquei muito feliz de passar em Berlim, me senti bem acolhido lá, e tenho muita gratidão pelo espaço oferecido ao filme. Mas para dizer a verdade, não acredito que isso tenha desempenhado um grande papel no lançamento do filme. O que contou para a atenção ao filme, no caso, foram as respostas positivas do público, as críticas majoritariamente positivas, e o fato de Charlotte Gainsbourg ser uma atriz muito popular. Estes elementos contam mais. Berlim é um acréscimo bem-vindo, mas não acredito que tenha sido um fator determinante.

Gosto da ideia que um filme possa ser visto em diferentes partes do mundo, e comover as pessoas de acordo com suas percepções e experiências de mundo distintas.

Acredita que este retrato típico de uma parte de Paris de décadas atrás possa ser percebido da mesma maneira no mundo inteiro, inclusive no Brasil?

Provavelmente, ele será percebido de maneira distinta, o que é algo positivo! Isso é genial: gosto da ideia que um filme possa ser visto em diferentes partes do mundo, e comover as pessoas de acordo com suas percepções e experiências de mundo distintas, de acordo com suas culturas e vivências. Esse é o aspecto mais gratificante para qualquer cineasta: saber que seu filme está sendo apreciado em outros lugares, em outro canto do mundo, e as outras pessoas — que sejam dezenas ou milhares — o apreciam. Isso pode ser em qualquer país, qualquer cultura. Noites de Paris aborda a história de uma família, os olhares de uns sobre os outros dentro da mesma casa, as famílias reconfiguradas, a adolescente sem o sentimento de pertencimento social, por ter vivido em vários lares adotivos. Além disso, este é um filme de sensações, impressões, algo que pode dialogar com qualquer espectador. É claro que o aspecto político em segundo plano pode perder algumas nuances na percepção alheia, mas esta certamente não é a parte mais importante do meu filme. 

Você presta atenção às reações ao seu filme? Lê críticas, possui interesse pelas respostas do público nas redes sociais?

Depende do momento. Às vezes eu presto atenção, mas em outros momentos, prefiro me proteger dessas reações. Varia muito. É claro que sempre existe a curiosidade para descobrir estas opiniões, mas quando mergulhamos demais nisso, podemos nos perder com facilidade. É um meio particular. Quando o filme está feito, uma etapa se concluiu, e ele passa a pertencer ao espectador. Ali, não há mais nada que eu possa fazer.

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