O Debate (2022)

Um genocida qualquer

título original (ano)
O Debate (2022)
país
Brasil
gênero
Drama
duração
76 minutos
direção
Caio Blat
elenco
Debora Bloch, Paulo Betti, Caio Blat, Elias Gabriel, Luísa Arraes, Tainá Neves
visto em
Cinemas

O Debate promove um exercício curioso de aproximação e distanciamento em relação à realidade brasileira. Por um lado, faz menções explícitas ao governo Bolsonaro: os diálogos resgatam a “gripezinha”, o brasileiro supostamente imune à Covid porque “nada no esgoto”, o posicionamento de extrema-direita, a falta de compaixão com brasileiros mortos. “Ele é um fascista. Gosta de armas”, afirma a jornalista Paula (Débora Bloch). A enxurrada de notícias falsas promovidas pelo presidente e seus aliados, além da tendência a faltar aos debates, também vêm à tona.

Por outro lado, o nome de Bolsonaro jamais é citado na narrativa. Pela ótica particular da ficção, Paula e o ex-marido Marcos (Paulo Betti) poderiam estar discutindo um presidente populista e autocrático qualquer. No entanto, as referências insistem se tratar do atual ocupante da presidência — ao invés de Trump, Duterte ou Orbán, por exemplo. Eles tampouco citam Lula, apenas “nosso candidato”. Alguém poderia apontar que o preferido dos protagonistas seria Ciro Gomes, Simone Tebet, ou outro representante da “terceira via”. No entanto, os posicionamentos políticos de ambos deixam pouca margem para uma leitura centrista, um posicionamento “nem nem” em relação aos líderes isolados da pesquisa eleitoral.

Isso porque o longa-metragem criado por Caio Blat foi idealizado, filmado e finalizado há poucos meses, estabelecendo um ritmo e um processo velocíssimos para o padrão da cinematografia brasileira. A proximidade permite que os personagens mencionem a criança estuprada, que Bolsonaro e seus ministros queriam impedir de abortar, além de outros episódios recentes da atroz política do capitão. A proximidade temporal representa outro elemento que mergulha o espectador na realidade: trata-se do período da campanha eleitoral, quando Paula pensa na melhor maneira de “impedir que a extrema-direita ganhe… de novo”.

Por isso, o cinema adquire um raríssimo aspecto de registro “ao vivo”, um audiovisual capaz de comentar aquilo que os espectadores veem no tempo presente. Até então, apenas as reportagens e matérias jornalísticas se colavam ao real de tal maneira, porém o formato diminuto de produção permite ao cineasta traçar uma representação veloz dos fatos, espécie de impressão imediata, urgente, a respeito de um novo velho perigo: a ascensão da extrema-direita ao poder, ou no caso, sua possível manutenção. A palavra “golpe” é mencionada: os protagonistas questionam a possibilidade do líder pouco afeito à democracia não aceitar a possível derrota nas urnas.

Resta pouco ao interlocutor em termos de reflexão, provocação, metáfora, ambiguidade, poesia, subentendido. Os personagens dizem tudo o que pensam.

O comentário a quente sobre os fatos promove uma identificação fácil e imediata. A dupla de âncoras de um grande telejornal popular, sendo a mulher mais próxima dos ideais progressistas, e o homem, um sujeito conservador, possibilita a aproximação com certo casal famoso de âncoras globais. Assiste-se ao filme como quem discute política com familiares num jantar de domingo, com os amigos no bar, ou com desconhecidos no transporte público. Trata-se de um tema de evidente complexidade, porém a respeito do qual todos possuem opiniões e certezas. Há um teor acessível na peleja de ex-marido e ex-esposa.

No entanto, determinados fatores prejudicam este debate amigável. Um dos mais importantes diz respeito à literalidade do discurso: os acenos aos acontecimentos são imediatos e fáceis de identificar, porém evitam se abrir a questionamentos que ultrapassem seus referenciais óbvios. Em outras palavras, trata-se de um enigma fácil de decifrar, um “o que é, o que é” cuja resposta se obtém nos primeiros minutos. Estabelecido o tabuleiro do jogo, Paula será uma ferrenha acusadora dos desmandos bolsonaristas, enquanto Marcos relativiza as decisões do atual presidente.

Resta pouco ao interlocutor em termos de reflexão, provocação, metáfora, ambiguidade, poesia, subentendido. Os personagens dizem tudo o que pensam, e que parece corresponder ao pensamento imediato de seus criadores. Percebe-se sem dificuldade que Caio Blat se filia às ideias de Paula, instalando Marcos na função de advogado do diabo e criador de conflitos, sem os quais a trama não avançaria. Os posicionamentos de ambos estão consolidados, claros, e eles os verbalizam com uma clareza e uma pompa que inclusive supera o linguajar típico do registro oral (vide a escrita na primeira pessoa do plural, e falas sobre “salvá-lo”). Oferece-se ao espectador a discussão pronta, sem convidá-lo a participar da mesma. Para uma obra política, surpreende a postura de passividade em que se instalam os sujeitos em frente à tela do cinema.

Em consequência, a teatralidade do dispositivo impede que soe orgânico, ou natural como pretendem os autores. É improvável que o redator-chefe e sua âncora sejam os únicos a discutir política, a determinar sozinhos as pautas do telejornal, sem prestar contas a diretores, sem discutir com colegas, sem buscar a ajuda de estagiários e assistentes. Talvez no intuito de facilitar a produção, o longa-metragem ergue um mundo movido somente pela dupla central, relegando os demais à função de figurantes. 

Por isso, interessa-se apenas ao discurso deste ex-casal branco, de classe média-alta, para quem a pobreza e as dificuldades financeiras soam como uma abstração longínqua: nota-se a empatia de Paula por indivíduos negros e marginalizados, porém nem ela, nem Marcos soam particularmente afetados pela política fascista que denunciam. É difícil falar sobre o Brasil contemporâneo, de maneira tão explícita, sem incluir o povo, a classe média e as classes populares, os indivíduos de diferentes regiões e raças. Paira uma boa consciência burguesa, algo problemático enquanto representação: para se falar de pobreza e discriminação, é fundamental dar voz aos discriminados, ao invés de solicitar à Zona Sul do Rio de Janeiro que discurse em nome deles.

Logo, falta vida ao redor da dupla central. O roteiro de Jorge Furtado e Guel Arraes tenta aprofundar a construção dos heróis através de flashbacks, quando descobrimos o amor existente no passado, e a distância daquele sentimento em relação à fria cordialidade do presente. Caio Blat vai além, na direção, ao introduzir flashbacks dentro dos flashbacks, num recurso um pouco desengonçado. O título se torna uma pequena e singela ironia, tão óbvia quanto a menção mal-disfarçada a Bolsonaro: o debate seria aquele entre os protagonistas, ou entre dois campos ideológicos, enquanto o debate entre os presidenciáveis acontece na televisão, ocultado do espectador.

Diante desta metralhadora de diálogos, o cineasta recorre à dinâmica em moldes norte-americanos, quando os dois personagens conversam enquanto caminham freneticamente do corredor à sacada, da sala de redação ao estúdio de gravação. Há ecos de Newsroom e outras criações de Aaron Sorkin no equivalente brasileiro, no sentido de acreditar que a movimentação dos corpos compensa a ausência de transformação dos personagens e das ações. Os protagonistas não se modificam, porém se movem sem parar. 

No elenco, Débora Bloch se mostra bastante confortável com as falas denunciando o fascismo bolsonarista, o descaso durante a pandemia, o apoio à ditadura e outras atrocidades cometidas pelo chefe de Estado. Ela incorpora as falas como se fossem suas, sem esforços. Paulo Betti encontra um pouco mais de dificuldade em elaborar o sujeito centrista, isento diante de decisões do presidente. O texto soa mais quadrado na boca do intérprete, ainda que ambos demonstrem experiência de sobra para sustentar a linearidade do jogo cênico. Eles demonstram um grau de intimidade verossímil para um antigo casal que ainda trabalha junto, em regime funcional.

O Debate se encerra em duração enxuta, sinal de uma obra que não quis, ou não pôde, se desenvolver mais. O projeto evidentemente ganharia em incorporar outros personagens, em colocar a dupla central em contradição, em vê-los aplicar (ou não) estas medidas nos seus cotidianos. No entanto, parecia mais importante aos criadores terminar a obra logo, lançá-la em pleno período de eleições presidenciais, servindo de comentário ao mundo que vivemos. Para o público progressista, propenso a concordar com as ideias de Paula, é possível que o roteiro ofereça pouco material para reflexão. Já o público conservador dificilmente embarcará numa obra nacional de cunho político. A influência direta no real, portanto, corre o risco de ser modesta. Servirá sobretudo de sintoma sobre uma maneira de produzir e conceber um cinema político, e sobre política, face à ameaça de golpe no horizonte.

O Debate (2022)
5
Nota 5/10

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