Will Smith x Chris Rock: Uma análise estética

Sobre linguagem de cinema e (ausência de) ponto de vista

Em primeiro lugar, é importante avisar que este artigo não visa opinar sobre quem teve razão no episódio envolvendo Will Smith e Chris Rock na cerimônia do Oscar 2022. Muito já foi dito a respeito, defendendo um lado ou outro, ou então ambos, ou ainda nenhum deles. Foram evocadas a defesa da honra e a doença de Jada Pinkett-Smith, enquanto as redes sociais transbordaram de teorias conspiratórias. Nada disso importa — aqui, pelo menos.

O fato é que a estranha cena constitui o fragmento de uma narrativa maior, agenciada segundo escolhas de direção e montagem, mesmo que ao vivo. É possível, portanto, analisar o episódio enquanto matéria de imagem, ou escolha de linguagem. A festa da indústria norte-americana constitui cinema em si própria, ou pelo menos, um espetáculo audiovisual. Além disso, vale propor o exercício de rever, por outro ângulo, uma cena tão explorada.

Enquanto forma de narrativa, o tapa constituiu o clímax de uma narrativa que se encaminhava de maneira linear e previsível. Ele constituiu a reviravolta inesperada, que passaria a ressignificar todas as imagens precedentes, e sobretudo, aquelas que viriam depois. Trata-se de uma surpresa tão forte que, no cinema de ficção, seria criticada por chamar atenção excessiva a si própria, descolando-se do resto da trama. Neste caso, o parêntese se tornou mais potente que a frase ao redor, e a nota de rodapé fagocitou o texto enfadonho.

O gesto se converte em sintoma de uma época na qual estrelas não bastam para sustentar um programa, e tampouco para trazer espectadores aos cinemas. O star system do século passado desapareceu, e o ano em que fãs de Leonardo DiCaprio compravam seis, sete, oito ingressos para assistirem a Titanic (e disputarem com os colegas o posto de fã supremo) parece distante. Hoje, impera o acontecimento viral, nas redes sociais, durando segundos e dispensando contextualização. O tapa se tornou um evento dentro de um não-evento. 

Em consequência, aprofundou o abismo entre um entretenimento convencional e antiquado (estrelas de vestido luxuoso no tapete vermelho, agradecendo diretores, colegas de trabalho e erguendo troféus, às lágrimas) e um império da diversão efêmera no YouTube, TikTok, WhatsApp e Facebook. A cerimônia apela ao resquício de uma cultura pomposa e sacra, enquanto a agressão se dirige ao senso de urgência, ao prazer epidérmico e profano. Para o bem ou para o mal, a festa de prêmios representa o passado, e o tapa, o presente.

Para o bem ou para o mal, a festa de prêmios representa o passado, e o tapa, o presente.

Quando Will Smith se levanta rumo ao palco, após escutar a péssima piada ridicularizando os efeitos da alopécia de sua esposa, a câmera o capta de costas, à distância. Ela evita seguir o personagem, efetuar um zoom-in em seu movimento, talvez por ignorar a intenção deste. O vencedor da estatueta por King Richard: Criando Campeãs (ironicamente, um drama que romantiza a violência “passional” de um pai protetor) desfere o golpe de costas contra Chris Rock enquanto permanece para o espectador, impossibilitando observar seu rosto durante o gesto.

Qualquer cineasta de ficção aproveitaria a expressão do marido ressentido durante o ato, em close-up, adotando talvez uma câmera móvel para acompanhar a caminhada pelo palco. O espectador ficou com uma incômoda explosão emocional vista de costas, subentendida. O conflito carrega o teor de uma ação fora de quadro, apesar de dentro do enquadramento — uma imagem onde o motor narrativo foi ocultado dos nossos olhos. Em consequência, houve confusão da espectatorialidade, e o espectador ativo precisou imaginar o que lhe foi escondido: que expressão teria Smith no instante preciso da agressão?

Na volta à cadeira, este último ostenta um curioso sorriso de satisfação, antes de se sentar e se irritar novamente, gritando com Rock. A decupagem, indecisa quanto ao que fazer, impede as multiplicações de olhar, permanecendo junto ao ator enfurecido: “Tire o nome da minha esposa da sua boca!”. Segundos depois, Smith estará rindo novamente, talvez de nervoso, ou ainda para disfarçar o ato e seguir adiante. Este personagem, ou persona existente sob os holofotes, soa contraditória, passando do riso à raiva, do controle afável ao descontrole violento. 

A dificuldade de torcer ou não pelo (anti-)herói se deve ao fato de ignorarmos suas emoções e motivações, que se modificam a cada instante. Ora, as redes sociais exigem uma posição definitiva e extrema, seja para um lado ou para outro. Assim, multiplicaram-se as vozes de “um tapa foi pouco”, em oposição às vozes de “matou a própria carreira”. Provavelmente, nenhuma delas teria razão, mas diante do forte ruído provocado pela bomba midiática, o homo cibernéticus sente que precisa gritar ainda mais alto para ser ouvido, no intuito de viralizar e atirar as atenções para si. Discursos moderados e ponderados exigem reflexão, dialética. Eles demoram. Soam, portanto, inapropriados.

A cena deflagra outra questão inerente à cerimônia ao vivo: a ausência de um ponto de vista.

A cena deflagra outra questão inerente à cerimônia ao vivo: a ausência de um ponto de vista. Os diretores buscam o olhar distante e onisciente, que não se confunde com a visão de ninguém em particular. Caso enxergássemos a agressão pela perspectiva da trinca de apresentadoras (com um rápido insert da reação imediata delas, por exemplo), ficaríamos próximos delas e nos identificaríamos com sua possível apreensão. Caso seguíssemos Chris Rock desde antes da entrada no palco, relendo as fichas das piadas; ou ficássemos desde o início junto aos olhares e reações de Will Smith e familiares, nossa reação teria sido diferente. 

Outra possibilidade teria sido um olhar inteiramente próximo a Jada Pinkett-Smith, se os diretores tivessem ciência dos fatos e pudessem antecipar o ocorrido, é claro. Em outras palavras, caso se tratasse de uma ficção, controlada e construída para as câmeras. Estranha-se que ninguém tenha cogitado a possibilidade de a mulher forte e determinada ter se defendido sozinha, se quisesse — via voz, tapa, entrevista aos microfones, artigos na mídia. Discutiu-se apenas o mérito ou não da proteção do marido. Relegaram a verdadeira protagonista à condição de coadjuvante, o que talvez tenha resultado no principal ato de machismo deste episódio: diante da agressão a uma mulher, debateu-se obsessivamente o duelo entre dois homens.

Ora, a ausência de protagonista contribui à dificuldade de compreender o que se passou, de fato, na irrupção de espontaneidade em meio à narrativa empoeirada. Teria sido mais fácil nos filiar ao discurso oficial da cerimônia, caso esta tivesse tomado o lado de um dos participantes. Como não o fez, o aspecto moral do tapa permaneceu longe das imagens. Coube aos comentaristas, espectadores e “especialistas” (até “consultores de tapas” foram convidados a opinar na imprensa circense brasileira) determinar o valor cênico, ético e de entretenimento do ocorrido. 

A perspectiva do tempo real serviu a intensificar a ação, pela rapidez com que ocorreu. Na hipótese de possuírem controle e preparo prévio, os diretores do Oscar saboreariam a decisão de Smith em se levantar e caminhar, sublinhando a pluralidade de emoções no retorno. Aqui, os planos longos e abertos permitiram ao espectador passear seus olhos pode onde desejava: na expressão de um, de outro, no olhar incrédulo de Lupita Nyong’o ao fundo, nos elementos de decoração de cenário. Ele pôde se focar, igualmente, no incômodo silêncio após as falas de um e outro. Houve pouca condução emocional e narrativa deste clímax por parte dos diretores da cerimônia, tendo como consequência o desconcerto das pessoas ao redor. 

Este momento selou a crise identitária de uma premiação onde o cinema foi rebaixado, de coadjuvante a figurante.

Durante estes poucos segundos, ficção e realidade se fundiram, ou se misturaram. Em contraste com as imagens fatuais, próximas ao real (as estrelas flagradas com seus celulares à mão, interagindo alegremente pelos cantos) e aquelas de natureza protocolar, e portanto ensaiada, ficcionalizada (os discursos lidos, a emoção inesperada dos vencedores mais previsíveis), a agressão constituiu um raro ponto de ruptura da fronteira entre linguagens. O aspecto explicativo de um evento audiovisual deste porte (é preciso que o telespectador compreenda exatamente o que ocorre, com quem, e quando) se perde. Desta vez, houve tensão e indefinição. 

Em outras palavras, a festa de revelações e esclarecimentos (“E o Oscar vai para…”) adquiriu um mistério próprio, algo que a luz mal agenciada sobre os dois atores acabou por acentuar. O interesse profundo da mídia por um evento de coluna social reforça a dificuldade da antiquada Academia em gerar interesse pelos filmes e artistas que divulga. Alguns disseram que o tapa finalmente tornou o Oscar relevante, alavancando a audiência e as menções em redes sociais. Pelo contrário, este momento selou a crise identitária de uma premiação onde o cinema foi rebaixado, de coadjuvante a figurante. 

Prêmios importantes foram retirados da cerimônia ao vivo, novas apresentações musicais foram criadas, intervenções cômicas constrangedoras se multiplicaram, e o segmento in memoriam recebeu tratamento de um instante divertido. O Oscar se esforçou para tornar seus filmes dignos da cultura pop, mas foi superado por um insert de descontrole emocional. Este seria o equivalente de um drama bem-intencionado cujas atenções se concentrar no youtuber convidado para uma ponta constrangedora, mas capaz de garantir ingressos. Os atores profissionais se perderam, e o cinema, também. Alguém se lembrará, daqui a um ano, do vencedor de melhor filme em 2022?

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