Cine Ceará 2022: O apagamento de pessoas, línguas e desejos

Na noite de segunda-feira, 10 de outubro, teve início a competição brasileira de curtas-metragens do 32º Cine Ceará – Festival Ibero-Americano de Cinema. Dez obras disputam os principais prêmios do evento, representando diversos Estados brasileiros — com destaque para Minas Gerais, que possui três títulos na seleção.

Os três primeiros filmes apresentados ao público e à imprensa se unem pela ideia do apagamento histórico de expressões e identidades minoritárias. Trata-se de filmes que desejam honrar pessoas, línguas e formas de desejo ocultadas pelo senso comum e pelas formas dominantes (ou opressoras) de uma ideologia conservadora.

Camaco, de Breno Alvarenga

O documentário mineiro Camaco (2022), de Breno Alvarenga, dedica-se ao dialeto mencionado no título, uma forma curiosa de inversão de letras e sílabas desenvolvida pelos mineradores de Itabira para se comunicarem sem serem compreendidos pelos outros. O roteiro explica brevemente como as palavras são formadas, e oferece uma narração em off, inteiramente em camaco, sobreposta a materiais de arquivo, em preto de branco, representando a intensa extração de minérios no local.

Os melhores aspectos do curta provêm dessa projeção fantasmática da linguagem pouco conhecida sobre um registro igualmente esquecido da mineração que fagocitou a economia do município. Já os depoimentos de moradores, sentados em suas cadeiras contra a quina de um cômodo vazio, soam mais convencionais, didáticos, e dificultam a tarefa da montagem, obrigada a alternar entre enquadramentos idênticos e chamar atenção excessiva aos próprios cortes. Acaba funcionando como evocação de um dialeto esquecido, mais do que uma crítica eficaz à voracidade capitalista.

Filhos da Noite, de Henrique Arruda

O documentário pernambucano Filhos da Noite (2022), de Henrique Arruda, reafirma o interesse do cineasta em se debruçar sobre existências e resistências LGBTQIA+. Desta vez, ele se concentra na velhice de homens gays, refletindo acerca das transformações nos corpos, no desejo, na sociedade. O tom predominante de melancolia se constrói através da alternância entre frases espirituosas dos protagonistas e depoimentos crepusculares.

Os cinéfilos que acompanham o trabalho do diretor devem perceber as intervenções de cores e texturas que dominavam Os Últimos Românticos do Mundo (2020), e se fazem mais discretas neste caso. Diversas propostas estéticas possuem interesse e força em si: a apresentação numa boate, as fotografias de corpos nus (gerando stills belíssimos), as andanças pela cidade com estes corpos e identidades ocupando naturalmente o espaço urbano.

É uma pena, no entanto, que nenhum destes elementos se desenvolva enquanto conceito estético, sendo rapidamente substituído pelo próximo, numa organização narrativa próxima do brainstorming. O encerramento, com frases a respeito da felicidade de estar vivo e o segredo de envelhecer bem, soam convencionais demais para uma obra que buscava alguma forma de transgressão. O caráter propositivo, como se o espectador precisasse tirar algum ensinamento deste contato, parece fugir ao propósito da linguagem. De qualquer modo, o curta-metragem recebeu os aplausos mais calorosos da noite, além de ter despertado fortes risadas e comentários na plateia no Cineteatro São Luiz.

Elusão, de Taís Augusto

A experiência mais interessante da noite veio de Elusão (2022), ficção tão instigante quanto seu título. O drama cearense, dirigido por Taís Augusto, apresenta o que poderia ser apenas um fim de semana comum para o casal formado por Lud e Afonso. Eles mergulham na piscina com os amigos, tocam música, dormem juntos. Entretanto, algo parece fora do lugar. Há pequenas provocações, estranhamentos, incompatibilidades. Às vezes, soam tristes; parecem não se entender bem.

A principal qualidade do filme reside na construção de uma estranheza através de recursos puramente estéticos. Nas mãos de um cineasta clássico-narrativo, a premissa poderia se converter num romance açucarado. Entretanto, a equipe opta por uma montagem fragmentada, elíptica, através da qual as cenas se bifurcam, se interrompem antes da hora, conduzindo o espectador por um labirinto de sentidos distintos. Esta escolha solicita um espectador cúmplice e ativo, num jogo fascinante de espectatorialidade. A competição de curtas-metragens já tem seu primeiro forte candidato aos prêmios de melhor direção, montagem e atriz, para Noá Bonoba.

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