Cinefantasy: Somos monstro, sereia e máquina

Dentro da programação do 14º Cinefantasy — Festival Internacional de Cinema Fantástico, é provável que a mostra de curtas-metragens Fantástica Diversidade seja um dos espaços mais criativos e instigantes de toda a programação. Aqui, os corpos se transformam, se amam, se amarram em fios; eles sangram, são compactados por máquinas, sobrepostos uns aos outros, ralados em suas peles, atacados por bruxas, pelos conservadores e pela própria montagem.

Este coletivo de filmes compreende muito bem o papel do corpo enquanto terreno de batalha central para a política contemporânea. Por isso, torna-se impossível discutir ideologia, pertencimento, gênero, sexualidade e coletividade sem passar pela construção dos corpos e, em especial, pela desconstrução dos mesmos. Enquanto alguns projetos expõem o corpo de perto, entre a performance e o horror (Body Truck Gostoso, Macho Carne, Semente), outros escolhem, em chave oposta, a ocultação das identidades através de meios digitais (Ausência, Bixa de Família). 

Threesome, de Thais de Almeida Prado, Va-Bene Elikem Fiatsi e John Heman

De qualquer modo, realismo e naturalismo não bastam aos criadores. Estes registros se limitam a materiais a partir dos quais criar, espécie de tela em branco diante da qual se modifica, distorce, pinta. O real representa o ponto de partida, jamais o ponto de chegada. Por isso, os curtas escolhidos trazem amplas trajetórias de mutação no interior de suas narrativas. É fundamental que não se termine da mesma maneira que se iniciou: a mudança, ou ainda, a revolução de formas, se traduz num valor em si.

Por isso, a sexualidade e o gênero convertem-se em categorias mais amplas, ao invés de temas obrigatórios das obras. Threesome (2020), curta dirigido por Thais de Almeida Prado, Va-Bene Elikem Fiatsi e John Heman, gira em torno das atividades cotidianas de três corpos, espelhados uns nos outros, ou sobrepostos via montagem. Não há qualquer menção à orientação sexual ou identidade de gênero dos artistas. 

Body Truck Gostoso (2021), criação experimental de Noam Youngrak Son, concebe um food truck imaginário onde se consome partes de corpos humanos — réplicas, no caso. Trata-se de uma metáfora evidente, dentro da qual se discute raça, desejo, repulsa e a própria noção de identidade. O enfoque em gênero se torna evidente, porém não explícito. A curadora Camila Borca compreende, a partir do ótimo recorte, que a maturidade de mostras sobre diversidade sexual se encontra no estágio em que deixam de tratar a questão LGBTQIA+ enquanto finalidade, enxergando-a como meio e linguagem.

Body Truck Gostoso, de Noam Youngrak Son

A política impregna estas aventuras, seja pela natureza intrínseca ao cinema, seja pela maneira despudorada e exagerada de manipular os corpos, ou ainda pela menção explícita ao Brasil de Bolsonaro. Bixa de Família (2022), de João Luis Silva, propõe uma colagem de indivíduos LGBTQIA+ que se identificam com o presidente de extrema-direita. Pela sobreposição de falas, explicita a falta de consciência de classe e a ausência de uma sensação de pertencimento: estes personagens criticam gays e lésbicas quem se beijam na rua, ou se queixam de preconceito. Somos todos iguais, afinal, para quê tanta histeria?

O diretor encontraria um problema ético fundamental caso expusesse os nomes e rostos destas pessoas para finalidade de paródia e/ou caricatura (o filme possui um teor cômico evidente). No entanto, toma a precaução de ocultar os rostos e modificar as vozes dos depoimentos, através de simples recursos de pós-produção. Assim, as opiniões deixam de corresponder ao pensamento de um punhado de pessoas específicas para ecoarem a ideologia de um grupo mais amplo. A descaracterização dos depoimentos serve para dar um passo atrás e analisar as ideias, ao invés de julgar moralmente as pessoas que as emitem.

Uma linguagem igualmente extrema se encontra no norte-americano Semente (2022), de Nikhail Asnani. O encontro entre duas jovens mulheres negras, aparentemente para fins profissionais, converte-se num jogo de sedução levado às últimas consequências — a morte, no caso. Parte-se do imaginário da bruxa maldosa para rejuvenescê-la e dotá-la de sexualidade e poder de sedução. Um progresso no retrato de grupos marginais corresponde a retirá-los do espaço de vitimização ou sofrimento, fazendo com que possam tomar as rédeas de seu desejo, para o bem ou para o mal. O jogo perverso deste curta-metragem ilustra uma voracidade sexual isenta de julgamento morais, percebida enquanto positiva por se tratar da aproximação entre duas mulheres.

Semente, de Nikhail Asnani

Em chave oposta, alguns filmes preferem a delicadeza. Em outras palavras, partem de registros habituais para narrativas a respeito de personagens heterossexuais, com o diferencial de conter um casal lésbico, em Ausência (2020), e de ser protagonizado por uma mulher transexual, no caso de Eu, Sereia (2021). Um lamento romântico a respeito do luto, para um, e um famoso conto de fadas, para outro: os criadores estimam que indivíduos LGBTQIA+ possuem o direito de se ver representados nas mesmas histórias que formam o (in)consciente heterossexual e cisgênero há séculos. Por que não?

No caso do filme brasileiro, opta-se por uma transparência cristalina de recursos: traços simples da animação; trilha sonora e sentimental de piano; frases confessionais e fantasmáticas. Os diálogos são direcionados a si mesma, ou talvez, ao além: “A presença da tua ausência foi a única coisa que restou”. “Eu quero te esquecer”. A indefinição de rostos favorece o caráter daquilo que se esvai, a tristeza permanente. A sinceridade e a humildade são privilegiadas em detrimento da busca por uma construção arriscada. 

Para o curta espanhol, aposta-se num estilo lânguido, letárgico, associado à delicadeza. A protagonista trans desta versão de A Pequena Sereia utiliza a metamorfose da criatura aquática enquanto símbolo da redescoberta de si. Exagera-se um tanto na trilha sonora, na atuação, nas câmeras lentas e mãos acariciando um aquário. No entanto, é compreensível que o imaginário kitsch de cores pastel equivalha a uma linguagem própria, escolhida para representar as diferenças — vide a banheira de água leitosa.

Macho Carne, de George Pedrosa

Por mais que se destaquem as qualidades e afinidades entre os curtas da mostra Fantástica Diversidade, nenhum deles provoca impacto semelhante àquele do excepcional Macho Carne (2021). O filme de George Pedrosa se encontra em outro patamar, combinando originalidade, ousadia, rigor estético e potência no discurso — virtudes espalhadas de maneira desigual nos filmes citados anteriormente. Para os espectadores que ainda não conheçam o trabalho do cineasta (como o autor deste texto não conhecia), sugere-se que guardem este nome na memória para as próximas obras.

O filme parte de uma performance erótica, artística e política da identidade gay. Assume-se o aspecto voyeurista e erótico da empreitada, algo que muitos projetos “comportados” preferem evitar em prol de uma aceitação mais ampla. Aqui, um rapaz contorcionista, de corpo oferecido sem pudores à câmera, recebe uma quantidade de líquido viscoso na boca, após a interação com três rapazes, em referência direta à ejaculação. Ele prende a língua com um fio, aproximando-a do formato de uma glande. 

Enquanto isso, a trilha sonora dissonante compara esta presença àquela de uma máquina, e um rosto coberto de pele esfolada estabelece a ponte com o cinema de horror. Alude-se aos prazeres sem limites e sem moral, tanto os da morte quanto os do gozo, que se equivalem por esta perspectiva. A imagem subliminar de um pênis é introduzida pela montagem apenas como alusão, estímulo à criatividade e aos sentidos. Utilizando-se das regras do queer americano, da linguagem do BDSM e do recurso erótico do terror, o cineasta constrói uma espécie de opus ao corpo libertário e libertino.

Body Truck Gostoso também perturba os sentidos pelos pedaços de corpos e pela sobreposição caseira e vertiginosa de imagens. Semente desperta curiosidade pelas cores e pela intensidade das atuações. Threesome solicita uma atenção potente e dispersa em simultâneo, através das telas que se multiplicam e se sobrepõem. Mas nenhum projeto transmite a força hipnótica de Macho Carne, obra capaz de condensar os vetores iniciados pelos filmes vizinhos. No final, a maneira como os títulos se conversam e se tensionam provoca uma experiência enriquecedora para discutir representatividade e cultura queer.

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