“Neste filme, tentarei contar a história das filhas de Olfa”. A diretora Kaouther Ben Hania serve de narradora ao projeto, declarando ao público suas intenções e também o dilema principal. Desde as imagens iniciais, menciona que duas filhas foram “devoradas por lobos” — em sentido simbólico, como se verá adiante. Filia-se, assim, ao movimento crescente de autores contemporâneos que se sentem na responsabilidade de explicar ao espectador os objetivos, métodos e conflitos, se possível, na própria voz do(a) cineasta.
Logo, a direção se personaliza (como se a mise en scène não constituísse um posicionamento em si), e também mergulha em procedimentos metalinguísticos explícitos. As Quatro Filhas de Olfa chama atenção constante ao fato de ser um filme, efetuando escolhas de ficcionalização a partir da tragédia desta família. Quando são chamadas três atrizes profissionais para viverem tanto as duas filhas que abandonaram o lar quanto a própria mãe “em momentos traumáticos”, presenciamos a direção de atores, o figurino, a maquiagem, os ensaios, as repetições.
Deste modo, o espectador adquire um importante distanciamento em relação ao teor sentimental. Enquanto muitos projetos buscam uma imersão acrítica e melodramática na dor alheia (vide 20 Dias em Mariupol, outro documentário indicado ao Oscar 2024), a autora tunisiana prefere aludir, metafórica e poeticamente, aos dilemas de terceiros. Em outras palavras, a ficção permite que ela represente o conflito sem mostrá-lo enquanto tal. Hania compreende a função do cinema enquanto construção de uma realidade, ao invés de mera apreensão do real.
O cinema contemporâneo tem permitido cada vez mais que diretores e personagens não apenas exponham suas feridas psíquicas às câmeras, mas também tentem elaborá-las durante o filme, graças a ele.
A ficção adquire, portanto, um caráter intermediário. Não constitui a finalidade do processo, razão pela qual jamais assistimos à gravação concluída, editada, sonorizada, apenas às filmagens “ao vivo”, em registro propício a um making of. Os criadores nunca desejaram que esta ficcionalização constituísse uma peça de arte autônoma, independente do testemunho dos familiares traumatizados. Logo, a encenação adquire um teor de faz de conta, um expurgo análogo ao exercício proposto por algumas linhas de terapia (cognitiva, por exemplo).
O cinema contemporâneo tem permitido cada vez mais que diretores e personagens não apenas exponham suas feridas psíquicas às câmeras, mas também tentem elaborá-las durante o filme, graças a ele. Neirud, Incompatível com a Vida, Eu Também Não Gozei e Nada Sobre Meu Pai seriam alguns exemplares brasileiros nesta linha — não por acaso, todos eles dirigidos por mulheres. No caso tunisiano, Olfa assiste à atriz Hind Sabri encarnar a si mesma na juventude, quando sofreu com um marido agressivo, e depois, com um namorado que estuprou suas filhas. “Pode bater mesmo”, ela indica às atrizes. “Ele falava palavrão assim mesmo”.
A personagem se torna diretora da ficção-dentro-do-filme, garantindo que a cena com atores corresponda à sua memória afetiva. Neste caso, os atores Hind Sabri e Majd Mastoura (este último encarnando diversos homens da vida das cinco mulheres) demonstram desconforto em sequências envolvendo sangue, facas, seringa, socos e humilhação. No entanto, a filha adolescente insiste que atuem da maneira agressiva solicitada. “Precisamos dessa cena. Preciso que o público veja o homem que ele era”. Olfa, Eya e Tayssir se empoderam de sua narrativa através do controle da simulação. Fazem as pazes com o real (ou pelo menos, partem nessa direção) a partir do domínio do simulacro.
Lentamente, este núcleo demonstra suas contradições. A mãe já foi violenta, abusiva, controladora. Recusa-se a usar o véu, mas adoraria ver as filhas usando. Recusava as investidas sexuais do primeiro marido, porém insiste que suas meninas sejam submissas aos eventuais parceiros. As filhas seguem um caminho semelhante: já usaram o hijab, depois abandonaram as vestimentas. Recusam a condição de “servas de Deus”, embora reproduzam, sem perceber, uma série de ditames rígidos da moral islâmica. A garota mais nova chora ao presenciar a representação do padrasto abusador. No entanto, emociona-se por não sentir raiva deste homem que, após a violência física do pai biológico, ainda soava como um referencial aceitável de figura paterna.
Enquanto as simulações ocorrem, a câmera se volta àqueles que observam, ao invés dos intérpretes profissionais. A rememoração de tapas e gritos é acompanhada de um olhar atento à expressão de Olfa, Eya e Tayssir, ora aos prantos, ora surpresas e mesmo satisfeitas. Um risco deste procedimento seria fazer com que as mulheres revivessem o trauma, e se sentissem mal novamente — caso em que falaríamos na exploração artística da miséria alheia. No entanto, Hania toma a precaução de deixar que elas conduzam a narrativa e as interações, até onde se sintam confortáveis. Em geral, as três vão muito mais longe do que a equipe imaginava fazê-lo.
As 4 Filhas de Olfa segue por rumos inesperados. Parte do distanciamento das filhas mais velhas para analisar a condição feminina na Tunísia, os abusos domésticos, a revolução extremista no país, o terrorismo, a exposição midiática de traumas pessoais. A cineasta corria um risco considerável ao anunciar apenas nos 30 minutos finais o que realmente ocorreu com Ghofrane e Rahma. Os rumos das duas poderiam se converter em suspense, em algo empolgante para que o espectador se divertisse através de um jogo de adivinhações, como ocorre em tantos thrillers fictícios convencionais.
Ora, o filme deixa claro o seu interesse no próprio dispositivo, além das confissões ou anedotas das garotas junto à mãe, tornando o destino das filhas mais velhas secundário (ainda que importante). Prefere estudar o terrorismo pela perspectiva das familiares que permaneceram ao invés de justificar a psicologia das irmãs fugidias. Entre episódios de violência e abandono, sugere discretamente os motivos que conduziram à radicalização de Ghofrane e Rahma. No entanto, prefere que eventuais menções ao caso partam das familiares, quando desejarem fazê-lo.
O resultado combina a dramaticidade e a leveza, incorporando o desconforto, em paralelo a muitos risos e gestos de sororidade com as atrizes. Hind Sabri questiona o conservadorismo de Olfa; as filhas brincam com as piadas violentas da mãe (“Quero ver seu sangue derramado pela calçada”), as atrizes interagem com as garotas como se fizessem parte de um único núcleo — afetivo, pelo menos.
O filme cresce cada vez que permite ao grupo apenas conversar, se provocar, arrumar os cabelos ou cantar juntas. Torna-se mais forte quando abraça a possibilidade de interação e carinho entre mulheres, dando-lhes a raríssima oportunidade de narrar o terrorismo e a opressão por sua perspectiva. Nas frestas onde ficção e documentário se fundem, sendo impossível (ou dispensável) dissociá-los, o longa-metragem oferece a empatia enquanto resposta à estética do choque.