As Quatro Filhas de Olfa (2023)

A ficção como terapia

título original (ano)
Les Filles d’Olfa (2023)
país
França, Tunísia, Alemanha, Arábia Saudita, Chipre
linguagem
Documentário, Drama
duração
107 minutos
direção
Kaouther Ben Hania
com
Olfa Hamrouni, Eya Chikhaoui, Tayssir Chikhaoui, Nour Karoui, Ichrak Matar, Majd Mastoura, Hind Sabri
visto em
Cinemas

“Neste filme, tentarei contar a história das filhas de Olfa”. A diretora Kaouther Ben Hania serve de narradora ao projeto, declarando ao público suas intenções e também o dilema principal. Desde as imagens iniciais, menciona que duas filhas foram “devoradas por lobos” — em sentido simbólico, como se verá adiante. Filia-se, assim, ao movimento crescente de autores contemporâneos que se sentem na responsabilidade de explicar ao espectador os objetivos, métodos e conflitos, se possível, na própria voz do(a) cineasta. 

Logo, a direção se personaliza (como se a mise en scène não constituísse um posicionamento em si), e também mergulha em procedimentos metalinguísticos explícitos. As Quatro Filhas de Olfa chama atenção constante ao fato de ser um filme, efetuando escolhas de ficcionalização a partir da tragédia desta família. Quando são chamadas três atrizes profissionais para viverem tanto as duas filhas que abandonaram o lar quanto a própria mãe “em momentos traumáticos”, presenciamos a direção de atores, o figurino, a maquiagem, os ensaios, as repetições. 

Deste modo, o espectador adquire um importante distanciamento em relação ao teor sentimental. Enquanto muitos projetos buscam uma imersão acrítica e melodramática na dor alheia (vide 20 Dias em Mariupol, outro documentário indicado ao Oscar 2024), a autora tunisiana prefere aludir, metafórica e poeticamente, aos dilemas de terceiros. Em outras palavras, a ficção permite que ela represente o conflito sem mostrá-lo enquanto tal. Hania compreende a função do cinema enquanto construção de uma realidade, ao invés de mera apreensão do real.

O cinema contemporâneo tem permitido cada vez mais que diretores e personagens não apenas exponham suas feridas psíquicas às câmeras, mas também tentem elaborá-las durante o filme, graças a ele.

A ficção adquire, portanto, um caráter intermediário. Não constitui a finalidade do processo, razão pela qual jamais assistimos à gravação concluída, editada, sonorizada, apenas às filmagens “ao vivo”, em registro propício a um making of. Os criadores nunca desejaram que esta ficcionalização constituísse uma peça de arte autônoma, independente do testemunho dos familiares traumatizados. Logo, a encenação adquire um teor de faz de conta, um expurgo análogo ao exercício proposto por algumas linhas de terapia (cognitiva, por exemplo). 

O cinema contemporâneo tem permitido cada vez mais que diretores e personagens não apenas exponham suas feridas psíquicas às câmeras, mas também tentem elaborá-las durante o filme, graças a ele. Neirud, Incompatível com a Vida, Eu Também Não Gozei e Nada Sobre Meu Pai seriam alguns exemplares brasileiros nesta linha — não por acaso, todos eles dirigidos por mulheres. No caso tunisiano, Olfa assiste à atriz Hind Sabri encarnar a si mesma na juventude, quando sofreu com um marido agressivo, e depois, com um namorado que estuprou suas filhas. “Pode bater mesmo”, ela indica às atrizes. “Ele falava palavrão assim mesmo”

A personagem se torna diretora da ficção-dentro-do-filme, garantindo que a cena com atores corresponda à sua memória afetiva. Neste caso, os atores Hind Sabri e Majd Mastoura (este último encarnando diversos homens da vida das cinco mulheres) demonstram desconforto em sequências envolvendo sangue, facas, seringa, socos e humilhação. No entanto, a filha adolescente insiste que atuem da maneira agressiva solicitada. “Precisamos dessa cena. Preciso que o público veja o homem que ele era”. Olfa, Eya e Tayssir se empoderam de sua narrativa através do controle da simulação. Fazem as pazes com o real (ou pelo menos, partem nessa direção) a partir do domínio do simulacro.

Lentamente, este núcleo demonstra suas contradições. A mãe já foi violenta, abusiva, controladora. Recusa-se a usar o véu, mas adoraria ver as filhas usando. Recusava as investidas sexuais do primeiro marido, porém insiste que suas meninas sejam submissas aos eventuais parceiros. As filhas seguem um caminho semelhante: já usaram o hijab, depois abandonaram as vestimentas. Recusam a condição de “servas de Deus”, embora reproduzam, sem perceber, uma série de ditames rígidos da moral islâmica. A garota mais nova chora ao presenciar a representação do padrasto abusador. No entanto, emociona-se por não sentir raiva deste homem que, após a violência física do pai biológico, ainda soava como um referencial aceitável de figura paterna. 

Enquanto as simulações ocorrem, a câmera se volta àqueles que observam, ao invés dos intérpretes profissionais. A rememoração de tapas e gritos é acompanhada de um olhar atento à expressão de Olfa, Eya e Tayssir, ora aos prantos, ora surpresas e mesmo satisfeitas. Um risco deste procedimento seria fazer com que as mulheres revivessem o trauma, e se sentissem mal novamente — caso em que falaríamos na exploração artística da miséria alheia. No entanto, Hania toma a precaução de deixar que elas conduzam a narrativa e as interações, até onde se sintam confortáveis. Em geral, as três vão muito mais longe do que a equipe imaginava fazê-lo.

As 4 Filhas de Olfa segue por rumos inesperados. Parte do distanciamento das filhas mais velhas para analisar a condição feminina na Tunísia, os abusos domésticos, a revolução extremista no país, o terrorismo, a exposição midiática de traumas pessoais. A cineasta corria um risco considerável ao anunciar apenas nos 30 minutos finais o que realmente ocorreu com Ghofrane e Rahma. Os rumos das duas poderiam se converter em suspense, em algo empolgante para que o espectador se divertisse através de um jogo de adivinhações, como ocorre em tantos thrillers fictícios convencionais. 

Ora, o filme deixa claro o seu interesse no próprio dispositivo, além das confissões ou anedotas das garotas junto à mãe, tornando o destino das filhas mais velhas secundário (ainda que importante). Prefere estudar o terrorismo pela perspectiva das familiares que permaneceram ao invés de justificar a psicologia das irmãs fugidias. Entre episódios de violência e abandono, sugere discretamente os motivos que conduziram à radicalização de Ghofrane e Rahma. No entanto, prefere que eventuais menções ao caso partam das familiares, quando desejarem fazê-lo.

O resultado combina a dramaticidade e a leveza, incorporando o desconforto, em paralelo a muitos risos e gestos de sororidade com as atrizes. Hind Sabri questiona o conservadorismo de Olfa; as filhas brincam com as piadas violentas da mãe (“Quero ver seu sangue derramado pela calçada”), as atrizes interagem com as garotas como se fizessem parte de um único núcleo — afetivo, pelo menos. 

O filme cresce cada vez que permite ao grupo apenas conversar, se provocar, arrumar os cabelos ou cantar juntas. Torna-se mais forte quando abraça a possibilidade de interação e carinho entre mulheres, dando-lhes a raríssima oportunidade de narrar o terrorismo e a opressão por sua perspectiva. Nas frestas onde ficção e documentário se fundem, sendo impossível (ou dispensável) dissociá-los, o longa-metragem oferece a empatia enquanto resposta à estética do choque.

As Quatro Filhas de Olfa (2023)
8
Nota 8/10

Zeen is a next generation WordPress theme. It’s powerful, beautifully designed and comes with everything you need to engage your visitors and increase conversions.