“Vamos em direção ao outro dizendo: me ajuda a compreender este mundo de loucos”, explicam diretoras de Novembro

Novembro é uma experiência poética e itinerante em busca de solidões múltiplas que habitam Montreal, entre o outono colorido e o inverso imaculado, nesta terra de ninguém de uma estação conhecida por sua tendência melancólica”. Assim começa uma carta escrita pelas diretoras Karine van Ameringen e Iphigénie Marcoux-Fortier aos amigos e próximos, muitos anos atrás. Elas continuam:

“É uma excursão pelas ruas da cidade, através de deslocamentos incessantes. É uma incursão na alienação do mundo moderno urbano: entre o trabalho e a casa, entre as obrigações e os sonhos. Exteriores anônimos, interiores vibrantes. Novembro é a narrativa de pessoas que presenciamos todos os dias, sem vê-las de fato”. Por fim, lançam um pedido: “Para encontrar todas estas pessoas, nós precisamos da sua ajuda. Apresentem-nos seu vizinho, fale de nós à sua tia ou ao seu primo. Os sonhos e histórias deles nos interessam. Eles saberão, certamente, nos guiar rumo a outras sabedorias. Ou talvez seja a sua própria?”.

Muitos meses de novembro mais tarde, as criadoras da produtora Les Glaneuses, no Canadá francófono, apresentaram no Olhar de Cinema — Festival Internacional de Curitiba o resultado de inúmeros encontros com pessoas das mais diferentes origens, situações e perspectivas de mundo. Novembro foi uma das melhores surpresas do evento paranaense: um filme humano, simples em sua proposta, porém complexo nas reflexões e encontros que promove. Um passeio pela riqueza do ser humano comum, solitário, porém repleto de histórias e afetos a compartilhar. Leia a nossa crítica.

O Meio Amargo conversou com as cineastas a respeito do documentário inusitado:

Em que medida o filme nasce de um roteiro preciso, e o quanto da narrativa foi definida na montagem?

Karine van Ameringen: Havia uma nota de intenções. Sempre precisamos escrever nossas intenções no começo, e também para convencer as instituições que nos ajudam a financiar o filme. Escrevemos o roteiro com a vontade de pensar no mês de novembro enquanto ele acontecia. Mas também havia a intenção de pensar num novembro metafórico: para nós, este mês representa este espaço quando voltamos para o interior das casas. Ficamos mais deprimidos, solitários, e menos ativos, porque a temperatura nos leva a ficar assim. Era uma maneira para nós de dizer que podemos nos permitir descansar, parar um pouco. Neste mundo enlouquecedor, todo mundo está produzindo demais, alienado pelo capitalismo e pelo patriarcado. Precisamos produzir, ser eficazes. Em novembro, ficamos mais deprimidos, por falta dessa energia produtiva. De fato, precisamos desse tempo mais sombrio. Uma mulher no filme diz isso: a sementinha, mesmo quando não a vemos na terra, está fazendo algo importante ali no escuro, na imobilidade.
Também queríamos sair de nossa própria depressão e ir de encontro ao outro, para entender como eles fazem para sair de suas próprias depressões, e como vivem neste mundo complicado. Queria conhecer a pequena verdade interior deles. Era a oportunidade de parar e escutar as pessoas que frequentemente cruzamos sem prestar atenção: a garçonete, a mulher do caixa. Queria ter uma troca profunda de ideias com ela. Era esta a nossa intenção no início, mas pensamos em seguida que sempre fizemos filmes sobre espaços distantes, e agora sentimos a necessidade de desenvolver um projeto sobre quem está perto de nós, pela cidade.
Como faríamos isso? Decidimos estruturar a busca como uma espécie de jogo: uma pessoa nos levava a uma segunda, que nos apresentava uma terceira, e assim por diante. Assim surgia a ideia de perceber uma comunidade pela cidade. É lógico que, quando fomos filmar de fato e conhecemos as pessoas, precisamos nos adaptar. Nós nos inspiramos em Richard Linklater, que fazia isso na ficção, em Slacker (1990). Pensamos na possibilidade de levar isso ao documentário, o que exigia certo tempo. Era preciso conhecer cada um deles, tomar o tempo de ouvi-los, e depois encontrar as novas pistas que eles nos forneciam. Mas é claro que, apesar das intenções iniciais, o roteiro se escreve na fase da montagem, no caso dos documentários. Tudo nasce na montagem.

Neste mundo enlouquecedor, todo mundo está produzindo demais, alienado pelo capitalismo e pelo patriarcado. Precisamos produzir, ser eficazes. Em novembro, ficamos mais deprimidos, por falta dessa energia produtiva.

Iphigénie Marcoux-Fortier: No caso deste filme, especificamente, a estrutura foi imaginada no início, quando começamos a escrever. Mas essa ideia era bem precisa, no gesto de ir de pessoa a pessoa. Levamos tanto tempo fazendo isso que acabamos filmando durante vários meses de novembro. Começamos o processo de montagem em paralelo. A cada vez, chegava um novo mês de novembro, e continuávamos as nossas buscas. Quanto mais o processo de montagem avançava, mais sabíamos que tal personagem seria conectado com o outro. Criamos pequenos blocos de grupos de personagens que seriam ligados. Isso evoluiu, e fizemos idas e vindas. Conforme a montagem se desenvolvia, ficava muito claro para as duas o que nos faltava para preencher um vazio estrutural. No começo, era uma ideia mais teórica e aberta. Na prática, nasceu este diálogo entre filmagem e montagem que nos levou de fato a perceber nossas necessidades. Até o último dia de montagem, ainda brincamos com a estrutura do filme. Este é o tipo de projeto em que a estrutura se pensa, no final, por um caráter emocional. 

Karine van Ameringen: Esse era o nosso desafio, construir uma narrativa indo de pessoa em pessoa. Queríamos ressaltar certas emoções, e sem tornar a estrutura redundante. É claro que algumas ideias retornam, mas não queremos colocar as pessoas duas vezes. Havia algumas escolhas de montagem a fazer. Por exemplo, depois de vários encontros, percebemos que tínhamos conversado sobretudo com homens. A vida acabou fazendo as coisas assim. O projeto foi filmado ao longo de vários anos, porque também temos outros projetos em paralelo, e vivemos longe uma da outra nesse momento. Eu tive dois filhos entre o começo do projeto e a conclusão. Então fomos buscar outros encontros.

Iphigénie Marcoux-Fortier: O fato de termos feito o filme durante tanto tempo transformou completamente o projeto, mas nós também nos transformamos enquanto isso, em nossas vidas privadas, entre meus 35 anos e 43 anos. Nesse período, acho que as duas viveram um movimento muito forte de afirmação de nossa feminilidade. Logo, esta busca por vozes femininas se tornou natural, quase uma resposta.

Como encontraram estas pessoas e propuseram fazer o filme? De que maneira receberam a ideia? Havia a preocupação de ter pessoas de raças, classes sociais e origens distintas?

Karine van Ameringen: Havia uma variedade de pessoas que buscamos. No texto que escrevemos aos amigos, citamos personagens como uma garçonete. Mas a ideia era encontrar pessoas que vivessem a vida de maneira diferente umas das outras. Assim, umas foram apresentando as outras: por exemplo, o sapateiro foi quem nos apresentou o homem que conserta pneus de bicicleta. Havia uma vontade e um desafio de buscar o outro. Nós vivemos em nossa pequena bolha, em microssociedades. Dificilmente temos acesso ao outro, a quem está fora da nossa rede. Buscamos esta variedade, mas sempre fica a pergunta: será que fomos abrangentes o bastante? Ainda faltava este perfil aqui, aquela pessoa ali… É complicado. Mas certamente tínhamos essa preocupação. Eu adoraria ter ainda mais diversidade, mas fico contente com o painel que construímos. Resta um mosaico heterogêneo.

Nós nos questionamos muito sobre como integramos aquilo que filmamos. Na montagem, preferimos ser mais sutis em relação à nossa presença.

Iphigénie Marcoux-Fortier: É engraçado, mas acabamos retirando cinco personagens na edição. É a teoria das caixinhas: temos uma tendência a viver em pequenas caixas, formadas apenas por pessoas que pensam e agem como nós. Isso vai de encontro com o que mostra o diretor Denys Desjardins no filme J’ai Placé Ma Mère. Precisamos criar lugares onde os idosos e as crianças interagem, por exemplo: quando os colocamos juntos, os pequenos ficam contentes de estar perto dos idosos, e estes também se divertem com as crianças. Mas os separamos em espaços diferentes. As mulheres grávidas também ficam separadas. Quando começamos o primeiro mês de filmagem, Karine estava grávida de cinco meses. Chegamos até a nos perguntar se acabaríamos filmando o parto! Nós nos questionamos muito sobre como integramos aquilo que filmamos. Tivemos ideias e estratégias diferentes. Na montagem, preferimos ser mais sutis em relação à nossa presença. Mesmo assim, deixamos três pequenos momentos com referências diretas a nós mesmas e nossa imagem. Por exemplo, somos nomeadas quando nos apresentam a Paul.

Mesmo assim, vocês preferem não inserir na montagem as perguntas que fazem às pessoas. Como se chega a tal grau de intimidade? As pessoas falam sobre seus amores, um homem detalha o desejo secreto de se vestir de mulher… Como conquistar tais confidências?

Iphigénie Marcoux-Fortier: É uma questão de empatia. Isso diz respeito à capacidade de escuta, mas antes mesmo desta escuta, havia o momento inicial onde nós nos conectamos de maneira real e profunda com eles. Isso vinha da nossa maneira de falar de maneira direta com eles. Acho que eles sentiam a verdade de nossas intenções, e isso permitia tal abertura na hora de conversar. Não mantivemos nossas perguntas, porque nunca realmente quisemos fazer entrevistas. A questão da solidão me remete a outro filme que vimos aqui no Olhar de Cinema, chamado Notas do Eremoceno. Limos um artigo no The Guardian, que falava da Era da Solidão como o tempo em que vivemos. Por isso, a nossa ideia era entrar nos apartamentos e nos espaços de pessoas solitárias, mas sem fazer entrevistas. Preferimos uma estrutura de conversas. 

Limos um artigo que falava da Era da Solidão como o tempo em que vivemos. Por isso, a nossa ideia era entrar nos apartamentos e nos espaços de pessoas solitárias, mas sem fazer entrevistas.

Karine van Ameringen: A título pessoal, posso dizer que faço documentários para entender o mundo. Vou em direção ao outro dizendo: me ajuda a compreender este mundo de loucos. Qual é a sua busca, sua vontade, seu propósito? Qual o sentido da sua vida, sua motivação? Isso me ajuda a compreender meu próprio lugar na sociedade e na vida. Com frequência, compartilhamos nossas próprias experiências com eles também, e nossas fragilidades. A necessidade de compartilhar vinha tanto deles quanto nossa. Sempre quisemos trocar ideias com estas pessoas, sem saber necessariamente onde a conversa nos levaria. 

A descrição de um filme melancólico sobre pessoas solitárias poderia indicar uma obra triste. Mas fico impressionado com a leveza e o humor de Novembro.

Karine van Ameringen: Isso veio de maneira instintiva. Talvez esta seja a nossa força. Nem sempre agimos de maneira super refletida, especialmente no caso deste projeto. Frequentemente, nos encontramos sozinhas com a nossa câmera, e acabamos trabalhando com aquilo que as pessoas nos forneciam. Queremos valorizar a filosofia do cotidiano. O sentido da vida pode estar, para alguém, no artesanato, na arte, em pequenas coisas que nos ajudem a pensar na vida. Mas não quisemos entrar no pathos, porque precisamos refletir a partir de outras perspectivas. Era mais interessante ver como estas pessoas se transformam para se ajustar ao cotidiano. Como elas compõem com a vida? Temos a impressão de que cada personagem do filme se transforma ao longo das conversas.

Somos todos filósofos: temos algumas filosofias pessoais que nos ajudam a atravessar a vida.

Iphigénie Marcoux-Fortier: Você havia descrito na crítica a nossa intenção de fazer conviver os temas grandiosos e as conversas pequenas; o cotidiano e o banal. Essa era a ideia mais importante para a gente: cada um tem sua experiência, seu pensamento. Somos todos filósofos: temos algumas filosofias pessoais que nos ajudam a atravessar a vida. Isso ajuda a enfrentar a banalidade e o absurdo do cotidiano. O contexto do mês de novembro, por ser pouco tempo antes do Natal, traz a ideia da transformação e de uma melancolia. Sentimos isso como um direito, algo natural e, portanto, nada dramático. Há o contexto do ambiente, das luzes: quanto mais nos aproximamos do Natal, mais as ruas se iluminam, e os lugares se transformam. Passamos de um contexto mais sombrio e vazio à neve que cai, às luzes e decorações que chegam, além dos desfiles que apresentamos no filme. Isso é um belo símbolo de resistência das pessoas.
O filme possui certa candura, ao tentar iluminar a parte sombria que existe nas pessoas. Além disso, fizemos encontros inimagináveis. A penúltima pessoa com quem conversamos possui uma doença, a Síndrome do Encarceramento. Ele está fechado sobre si mesmo. A maneira que ele tem de falar sobre o retorno ao movimento, através da experiência física e corporal, junto à força espiritual e à relação com os outros, já simboliza certa luz. Essa iluminação vinha dos lugares onde menos esperamos. É um equilíbrio delicado.

Novembro me parece ainda mais interessante por espelhar um tipo de documentário que raramente veríamos no Brasil. Aqui, é mais comum encontrar filmes com um “grande tema”: o racismo, a ditadura militar, a vida de um artista importante. Como financiaram e montaram a estrutura para produzir e exibir um filme sobre a vida cotidiana de pessoas comuns?

Iphigénie Marcoux-Fortier: Foi complicado produzir esse filme no Canadá. Mesmo assim, temos a sorte de ser também produtoras, com nossa empresa, Les Glaneuses. As duas possibilidades, como diretoras e produtoras, nos abrem vias diferentes para viabilizar os projetos. O Conselho das Artes financia os artistas, enquanto a SODEC (Sociedade de Desenvolvimento de Empresas Culturais) financia as empresas culturais. Com muita persistência, finalmente conseguimos completar o financiamento do documentário. É sempre um exercício complexo. Mesmo assim, temos a consciência de que possuímos muito mais recursos do que a maioria dos países. Ainda somos privilegiadas. 

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