Tudo Sob Descontrole (2022)

Terapia de choque

título original (ano)
En Roue Libre (2022)
país
França
gênero
Comédia
duração
89 minutos
direção
Didier Barcelo
elenco
Marina Foïs, Benjamin Voisin, Jean-Charles Clichet, Albert Delpy, Jean-Pierre Martins, Ariane Mourier, Emilie Arthapignet, Valentin Papoudof, Guarani Feitosa, Aleksandra Yermak
visto em
Cinemas

Certo dia, Louise (Marina Foïs) não consegue sair de seu carro. Aparentemente, há um ataque de pânico em curso, conforme os diálogos repetem adiante. No entanto, o diretor Didier Barcelo não demonstra nenhuma intenção de reproduzir a sensação da crise, de angústia, nem os sentimentos de vazio, de morte ou semelhantes. A atriz, contida como de costume, olha para baixo, permanece em silêncio e volta para o interior do carro. A crise está completa. Adiante, ela simplesmente declara: “Não consigo sair daqui”, em referência ao carro. E não sai mais.

Tudo Sob Descontrole solicita certa boa-vontade do público. Muitas comédias populares se esforçam para agradar, levando ao espectador aquilo que ele (supostamente) deseja ver. Aqui, em contrapartida, o criador mergulha numa jornada absurda, e pede que seu interlocutor faça o esforço de segui-lo, tolerá-lo e manifestar paciência com tamanhas esquisitices. “Eventualmente, tudo terá sentido”, nos promete cada cena ou reviravolta insana. Combinando o buddy movie, o road movie, o teatro do absurdo e a comédia de situações, a narrativa testa os limites de sua modesta premissa.

Logo, as guinadas improváveis se sucedem a cada cinco minutos. Um assaltante decide levar o carro de Louise. Ela se esconde no banco de trás, mas o ladrão não a vê. Descoberta a farsa, decidem seguir caminho juntos. Aceitam uma pessoa pedindo carona. Aceitam uma criança pequena desejando sentar no carro, por motivos desconhecidos. Aceitam o cortejo de uma comunidade de estrangeiros. O criador cogita inúmeras hipóteses de conflitos, num brainstorming frenético, incorporando todas as ideias na versão final.

Algumas escolhas decorrem diretamente dos lugares-comuns do road movie. O carro quebra no caminho, fica sem gasolina, é parado por policiais — assim como na maioria das narrativas semelhantes. Outros decorrem da vontade de introduzir um mundo de estranhamentos (e, portanto, de empolgação) na vida tediosa de Louise. A jovem “eletrossensível”, exigindo que o mundo desligue os celulares; o senhor idoso propondo sexo, e os mecânicos sugerindo o corte no teto do carro servem como intromissões forçadas na vida da enfermeira em carência de excitação.

Há um caráter paternalista, e típico dos contos de fada, na propensão a resolver dilemas duradouros ao longo de poucos dias, numa espécie de terapia de choque.

Em tempo, a comédia revela seu real interesse: aproximar duas pessoas solitárias, em diferentes instantes de crise e traumas pessoais. Eles seguem uma viagem onde nenhum dos dois pode abandonar o barco — ela, por continuar presa ao veículo; ele, porque acaba de cometer o roubo e visa praticar um homicídio na fronteira leste da França. Como de praxe no indie norte-americano, as figuras estranhas e inicialmente antagonistas descobrem uma simpatia inesperada uma pelo outra, ajudando-se a oferecendo uma amizade a fórceps. 

É muito curioso este cinema de aparência singela, porém decidido a injetar felicidade aos heróis, mesmo que não queiram. Vai ser feliz, sim, e sem reclamações. Há um caráter paternalista, e típico dos contos de fada, na propensão a resolver dilemas crônicos no intervalo de poucos dias, numa espécie de terapia de choque. A mulher incapaz de refletir sobre o suicídio da mãe será obrigada a fazê-lo, com um revólver na cabeça. O jovem reticente à tese de responsabilidade do irmão na própria morte também será pressionado a elaborar esta possibilidade.

Neste sentido, o carro se torna veículo, mas também prisão, castigo, calabouço. Ambos permanecem no interior até que façam as pazes um com o outro, e consigo mesmos. Assim, dilui-se o caráter da leveza inconsequente, ligada à loucura e à ausência de rumos aos personagens. Louise e Paul (Benjamin Voisin) param onde querem, inventam mentiras, mudam os rumos. Eles colocam fitas de música, dançam. No entanto, encontram-se num divã improvisado, ao qual um psicanalista vem literalmente prestar ajuda terapêutica. Ao invés de levar a enfermeira ao mundo, é o mundo que vem até ela.

A experiência melhora a partir do segundo terço, quando a esperada amizade se concretiza, e o texto acalma a introdução frenética de encontros e gadgets (o cachorrinho que balança a cabeça, os potes para urinar). Progressivamente, ambos se revelam, compartilham o passado e suas dores. Confirma-se a hipótese pouco inventiva, porém verossímil, de que os dois possam ter muito mais em comum do que imaginavam, e que este espelhamento permitiria o crescimento de ambos. Há um outro de nós em cada anônimo pela rua — esta é a bela e simples ideia do projeto francês.

No elenco, os estilos se equilibram pela oposição, como de costume nos buddy movies e nas trajetórias policiais. Marina Foïs, experiente, minimiza gestos e expressões para não acentuar um texto humorístico por si próprio. Benjamin Voisin, enquanto elemento externo ao carro (conseguindo sair e voltar do “palco” quando deseja), encarna a figura do malandro, agressivo, impulsivo, ainda que bem-intencionado em muitas cenas. Os coadjuvantes, meros catalisadores para os protagonistas, contentam-se com a excentricidade que jamais poderia habitar os dois personagens principais — caso em que o filme se tornaria dificilmente suportável.

O desfecho transparece uma impressão ambígua. Por um lado, copia Thelma & Louise de modo que pende ao plágio, ao invés de homenagem. Por outro lado, deixa a impressão de que este tratado tragicômico sobre a saúde mental não sabe ao certo onde levar seus personagens, preferindo forçar a leveza até mesmo quando a gravidade se faz necessária. Alguns espectadores poderão enxergar uma incômoda romantização do suicídio. Mesmo assim, há sorrisos e trapalhadas suficientes para que a refeição desça como um modesto aperitivo.  

Tudo Sob Descontrole (2022)
5
Nota 5/10

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