Olhar de Cinema 2022: Cinemas pós-traumáticos (Balanço final)

Muitas guerras e conflitos do século XX passaram pelas telas do 11º Olhar de Cinema: Festival Internacional de Curitiba. A Segunda Guerra Mundial, especialmente a invasão na Ucrânia, constitui o motor de Babi Yar. Contexto, de Sergei Loznitsa. O impacto da guerra na Alemanha condiciona as memórias de Os Laços que Unem, de Su Friedrich. Para Octopus, de Karim Kassem, o foco se encontra na explosão de um depósito de gás no Líbano. Em chave mais ampla, o apartheid na África do Sul é retratado em Filme Particular, de Janaína Nagata, com resquícios aparecendo em Grace Tomada Única, de Lindiwe Matshikiza.

Uma Noite sem Saber Nada, de Payal Kapadia, volta-se aos ataques violentos do governo indiano contra estudantes universitários, deixando dezenas de pessoas feridas; Freda, de Gessica Généus, aborda o estupro de mulheres no Haiti; e 7 Cortes de Cabelo no Congo, de Luciana Bezerra, Gustavo Melo e Pedro Rossi, apresenta as comunidades de cidadãos congoleses radicados no Brasil. Houve representações dos ataques a comunidades quilombolas em Upa, Neguinho!, de Douglas Carvalho dos Santos, e dezenas de casos de abusos domésticos enquanto pontos de partida de A Censora, de Peter Kerekes. Por sua vez, Esta Casa, de Miryam Charles, se refere ao estupro e suicídio de uma adolescente haitiana. 

Freda, de Gessica Généus

As temáticas não impressionam, afinal, a curadoria do Olhar de Cinema sempre demonstrou preocupação notável com questões humanitárias e suas representações através de formas radicais de linguagem. Em outras palavras, esta seria uma decisão ativa da curadoria, ao invés de um reflexo orgânico da produção audiovisual dos últimos anos. Nenhum espectador minimamente avisado espera encontrar nas telas do evento curitibano uma história de amor açucarada à la Nicholas Sparks.

Em contrapartida, um aspecto chamou atenção: a maioria destes traumas está ausente das imagens, embora presente nas discussões e nos discursos. Quando as narrativas começam, o dilema já se encerrou. Babi Yar. Contexto volta-se à coleta dos cadáveres pelas ruas de Kiev, e ao julgamento dos soldados nazistas pelos tribunais soviéticos, num instante posterior ao término da guerra. Octopus se inicia com a cidade completamente destruída: os bombardeios já aconteceram. A mãe da diretora Su Friedrich, em fase adulta, narra sua infância junto aos militares e as violências que sofreu.

Um aspecto chamou atenção: a maioria dos traumas está ausente das imagens, embora presente nas discussões e nos discursos.

A protagonista de Grace Tomada Única recorda o estupro e as humilhações em voz off, no pretérito imperfeito. O estupro de Freda também já ocorreu quando ela se apresenta em versão adulta, e aquele da garotinha de Esta Casa nunca será concretizado em cena. As detentas de A Censora encontram-se na prisão da primeira à última cenas, refletindo acerca dos crimes que cometeram, e os cidadãos de 7 Cortes de Cabelo no Congo já viveram suas situações de exclusão no passado, tendo encontrado acolhimento numa comunidade na Zona Norte do Rio de Janeiro. O dançarino de Upa, Neguinho! evoca as dificuldades passadas de assentar as famílias, porém em registros pacíficos e alegres.

Vários motivos podem explicar esta escolha por parte dos artistas. A primeira, e talvez a mais simples, seria de ordem de produção: convém a estes filmes ousados de baixo orçamento fazer referência a um conflito, verbalmente, ao invés de filmá-lo de fato. A possibilidade de registrar um evento enquanto ele ocorre é dada a poucos diretores, implicando em dificuldades óbvias, sobretudo no caso das guerras — o que não impediu Dziga Vertov de se posicionar em pleno campo de batalha para A História da Guerra Civil, em 1921. Cem anos depois, no cinema brasileiro, Maria Augusta Ramos se especializou em filmar calmamente as crises conforme ocorrem, durante anos, em regime de cumplicidade — vide O Processo, 2018, e Amigo Secreto, 2022.

Babi Yar. Contexto, de Sergei Loznitsa

Ora, os diretores poderiam então rechear suas produções de material de arquivo, oferecendo ao espectador a sensação urgente e chocante de presenciar guerras e violações de direitos humanos como se estivessem lá. Hollywood sempre operou nesta chave da espetacularização imersiva: sinta a guerra como se fosse um verdadeiro soldado! Testemunhe os instantes mais dolorosos, os choros em close-up, as corridas de militares corajosos no campo de batalha! Na ausência de conviver ao vivo com os instantes transformadores da História, cineastas do domínio dos sentimentos tentam reproduzir a violência em seu aspecto catártico.

Entretanto, soou como uma escolha deliberada, ao invés de uma falta de escolha, o posicionamento de tantas narrativas em instantes imediatamente posteriores às agressões. Optou-se por retirar o aspecto emotivo do centro da premissa para investigar seja as causas do ocorrido, seja as consequências do mesmo na vida dos cidadãos. Pouquíssimas produções do festival se voltaram aos governos, aos líderes de exércitos e grupos policiais. O que interessa, neste cinema humanista, é compreender de que modo o bombardeio afeta a vida de uma senhora idosa em Octopus, ou condiciona o afeto das mulheres pelos homens em Freda, e justifica a sede de vingança dos ucranianos em Babi Yar. Contexto.

Optou-se por retirar o aspecto emotivo do centro da premissa para investigar seja as causas do ocorrido, seja as consequências do mesmo na vida dos cidadãos.

O efeito dos procedimentos poderia ser de atenuação. Sem as bombas, nem as mortes na tela e a personalização dos conflitos na figura do herói martirizado, o espectador poderia sentir menos o impacto das tragédias. Os Laços que Unem deixa a narração de sofrimento em off, descolada da imagem, e Octopus prefere o silêncio. Esta Casa reconstrói cômodos em estúdio, e solicita às atrizes que interajam com telas pintadas. Filme Particular inclusive embute uma quantidade generosa de humor ao utilizar uma voz robótica, da inteligência artificial do Google, para narrar textos relacionados ao apartheid. O drama humano seria minimizado pelos autores?

Não, pelo contrário. As propostas selecionadas pelos curadores encontraram maneiras distintas de fugir ao sentimentalismo óbvio. Os personagens choram pouco nas imagens, e o espectador tampouco é convidado a chorar com eles (ou por eles). Os filmes ultrapassam o estágio moral das guerras, e da mera constatação de que existiram. Há um extenso filão de obras dedicadas à memória e ao arquivo. Para estas, a função da arte se encontra no lembrete constante de que o passado ocorreu. Por isso, uma vez transmitidos os fatos, o objetivo foi cumprido.

Esta Casa, de Miryam Charles

Outro grupo de projetos, mais ambiciosos, compreende que estes fatores já estarão no imaginário popular, ainda que se desconheçam os detalhes. Os discursos dão um passo além ao tentarem compreender as circunstâncias. Certo, as cidades foram destruídas, e pessoas foram mortas. Isso é grave, importante, mas já sabemos disso. Ora, que esforços são necessários para reconstruir uma cidade em ruínas? Para recompor a confiança na coletividade? Para se reestabelecer em outro país, com língua diferente? De que maneira esta experiência de dor permanece nas pessoas décadas depois? E nas gerações seguintes?

Trata-se, portanto, de cinemas de reconstrução de si e do próximo. Reconstrução das casas e das cidades; das psiques e dos afetos. Cinemas melancólicos e silenciosos, de gente que não chora mais porque já esgotou o estoque de lágrimas, conforme narra a protagonista de Uma Noite sem Saber Nada. Restam os rostos impassíveis de Octopus, a perplexidade dos cidadãos negros em Filme Particular, a firmeza no testemunho de Grace Tomada Única

Trata-se de cinemas de reconstrução de si e do próximo. Reconstrução das casas e das cidades; das psiques e dos afetos.

Estes são instrumentos de distanciamento, de perplexidade. A estranheza estética faz com que o espectador se questione sobre o que realmente vê, em sua natureza e verossimilhança: por que são tão escuras as imagens de Uma Noite sem Saber Nada? Por que as pessoas nunca se comunicam em Octopus? Por que a narradora jamais fala com uma voz humana em Filme Particular? Como interpretar a frieza protocolar da intérpreteno tribunal que condenou os soldados nazistas de Babi Yar. Contexto? As escolhas surpreendem e incomodam.

Assim, os filmes nos retiram do conforto: as mortes, estupros e agressões nunca nos são oferecidas enquanto entretenimento. Eles nos provocam, geram repulsa, indignação, asco, ou mesmo tédio. O mais importante é retirar a História de sua aparência de normalidade, de pompa solene e inevitável. Nenhum dos crimes aconteceu naturalmente; nada foi inevitável. Atos monstruosos exigem uma estética da monstruosidade, e cada diretor a buscou à sua maneira. É preciso retirar os atos de seus contextos para melhor compreendê-los: é preciso sair da ilha para ver a ilha, como dizia José Saramago.

Octopus, de Karim Kassem

O 11º Olhar de Cinema esteve repleto de filmes calmos, leves, contemplativos. Houve mais silêncio do que bombas, mais tempos mortos do que choros. Isso não se traduz numa seleção menos forte ou impactante: os dramas, documentários e obras experimentais propuseram maneiras de representar o absurdo ao invés de meramente apreendê-lo. O cinema ultrapassa o dever de documentação do real para refleti-lo, analisá-lo, sonhá-lo. Nestes tempos em que saímos aos poucos da pandemia de Covid-19, quando os países da América do Sul se recuperam de governos catastróficos de extrema-direita, as dores se fazem recentes demais. Ninguém precisa ser relembrado das mortes de cinco, dez, quinze anos atrás. 

Esta seria uma possibilidade de interpretação para tantas iniciativas que se abrem ao vazio, à letargia, ao sentimento de inércia. Nós também estamos, no mundo inteiro, em fase de reconstrução de nossas casas, nossos corpos e nossa saúde mental. O otimismo simples (a crença de que tudo ficará bem, eventualmente) tampouco basta — o real apenas se conserta mediante esforço coordenado. Portanto, através destas imagens provocadoras, porque inesperadas e etéreas, encontramos uma forma de luta — uma política da linguagem. Assim como os traumas do século XX vão repercutir durante muito tempo nos espíritos das gerações seguintes, estes filmes também podem, guardadas as proporções, repercutir nos seus interlocutores e fomentar uma consciência coletiva, tão necessária para estas sociedades em destroços.

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